22/12/2022 - 9:30
No meio ambiente – Bruno Pereira e Dom Phillips (in memoriam)
Bruno Araújo Pereira nasceu no Recife, em 1980. Entrou na Funai (Fundação Nacional do Índio) em 2010. Atuando como coordenador geral de Índios Isolados e de Recente Contato, em Brasília, comandou expedições para detonar balsas de garimpo em terras indígenas do Vale do Javari. Foi retirado do cargo, em 2019, no início do governo Bolsonaro. Licenciado da Funai, passou a atuar na União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Unijava), onde deu continuidade ao trabalho de monitoramento para mapear irregularidades . “Era o trabalho que a Funai deveria fazer”, explica a antropóloga Beatriz Matos, viúva de Bruno. Dominic Mark Phillips, o Dom Phillips, nasceu em Bebington, no Reino Unido, em 1964. Em 2007, passou a atuar como jornalista free lancer no Brasil para veículos como o britânico The Guardian. “No início ele escrevia sobre tudo”, lembra Alessandra Sampaio, viúva do jornalista. “Mas com o aumento do desmatamento da Amazônia, em especial durante o governo Bolsonaro, foi se interessando cada vez mais pelo assunto.”
A probabilidade de os caminhos do brasileiro Bruno Pereira e do britânico Dom Phillips se cruzarem era mínima, não fosse por um ponto em comum: o amor pela Amazônia. Foi isso que fez com que o indigenista e o jornalista estivessem juntos na embarcação que desapareceu no dia 5 de junho de 2022 no rio Itaquaí, no Vale do Javari (AM), ao final de mais uma expedição de monitoramento organizada por Bruno para mapear irregularidades em território indígena e denunciá-las à Polícia Federal e ao Ministério Público Federal. Foram emboscados e mortos no trajeto para Atalaia do Norte (AM) por pescadores que atuavam ilegalmente em território indígena, e seus corpos só foram resgatados dez dias depois. Bruno atuava na proteção dos povos indígenas, e Dom Phillips documentava o avanço do desmatamento – escrevia um livro sobre como salvar a floresta.
A região onde os dois foram mortos, próximo da fronteira brasileira com o Peru e a Colômbia, abriga a Terra Indígena Vale do Javari. Era ali que Bruno passava grande parte dos seus dias. “Ele se dedicava à questão dos isolados”, conta a antropóloga e professora da Universidade Federal do Pará Beatriz Matos, viúva de Bruno. O trabalho de mapear irregularidades foi responsável por inúmeras apreensões de embarcações que levavam pescado.
“Era muito difícil, cansativo, arriscado. Mas ele tinha uma certeza muito grande do que estava fazendo”, diz Beatriz. “Era uma deferência aos povos indígenas, inclusive espiritualmente: ele participava dos rituais, da religiosidade indígena. Tinha um amor muito grande pela floresta, era onde realmente se sentia pleno”. Depois do desaparecimento de Bruno e Dom, circulou e causou comoção um vídeo em que o indigenista canta uma canção indígena no meio da floresta. “Ele cantava aquela música pros meninos dormirem”, lembra a antropóloga, mãe dos dois filhos de Bruno, então com três e dois anos.
Durante as expedições, o indigenista ficava até 30 dias longe – e incomunicável. “A falta que ele fazia no cotidiano era enorme, tenho dois pequenos. Mas tanto ele quanto eu acreditávamos muito na causa. E eu continuo acreditando”, diz a antropóloga, que preside o Observatório dos Povos Indígenas, ONG da qual Bruno foi um dos fundadores e que foi criada para atuar onde o Estado falhou – na defesa dos indígenas isolados. “Seguimos adiante nesse trabalho”, frisa.
Como correspondente estrangeiro, Dom Phillips havia construído uma rede de contatos com ambientalistas, antropólogos, biólogos e ativistas – e passou a ter Bruno como referência quando o assunto eram as terras indígenas da região. Foi a partir dessa relação de confiança que Bruno se dispôs ajudar o amigo na pesquisa para o livro que estava escrevendo.
Já havia registros de desentendimentos entre o indigenista e pescadores ilegais na região, mas o estopim para o assassinato teria sido Bruno ter pedido para Dom fotografar o barco dos acusados. Mais gente, no entanto, estava contrariada com o trabalho de Dom na Amazônia – e quem verbalizou isso foi o presidente Bolsonaro: “Esse inglês era malvisto na região, ele fazia muita matéria contra garimpeiro, questão ambiental”, disse, ao tentar responsabilizar as vítimas pelo ocorrido ao dizer que eles “resolveram entrar numa área completamente inóspita”.
“Antes de falar do legado de Dom Phillips, eu quero falar da perda”, diz Alessandra Sampaio, viúva do jornalista. “A perda do Dom é uma perda minha, da família, de todo mundo; assim como a perda do Bruno. Ambos eram pessoas excepcionais”, lembra. “É uma perda humana, assim como foi a perda de tantas outras pessoas que foram assassinadas por sua luta pela preservação da floresta”. A dor da perda, no entanto, não diminui o clamor de Alessandra por justiça. “Acho que tem muita gente implicada. Os pescadores agiram a mando de organizações criminosas que continuam traficando drogas e armas, que pescam ilegalmente e roubam madeira de terras indígenas”. Ela destaca o compromisso de Dom com a função social de sua profissão, de informar sobre a importância da Amazônia.
Bruno Pereira e Dom Phillips dedicaram suas vidas à preservação da Amazônia. A morte, em vez de calar, amplificou suas vozes e revelou ao mundo o desmantelamento das políticas públicas para o Meio Ambiente no Brasil e o descaso do governo Bolsonaro com a floresta.