17/02/2023 - 9:30
Se Rembrandt ficou famoso por seus retratos monumentais e Van Gogh pelos seus girassóis coloridos, outro grande mestre holandês, Johannes Vermeer, escolheu como tema o lado prosaico da existência humana. Suas pinceladas precisas registraram cenas domésticas de moradores da classe média de Delft, pequeno vilarejo no sul do país. Ele também se diferencia de Rembrandt e Van Gogh por outro aspecto: enquanto a vida de seus conterrâneos foi amplamente documentada, pouco se sabe da trajetória do pintor que viveu 43 anos, de 1632 a 1675, e deixou apenas 35 obras-primas.

O Rijksmuseum, em Amsterdã, pretende mudar essa percepção. Foi inaugurada no início da semana a maior exposição de Vermeer realizada até hoje, com 28 pinturas em exibição – sete delas não eram vistas na Holanda há mais de dois séculos. A última vez em que foram reunidos mais de vinte quadros de sua autoria deu-se há mais de trinta anos, quando a National Gallery of Art, de Washington, se uniu ao Museu Mauritshuis, de Haia, para uma mostra conjunta. A nova exposição só foi possível graças a cessões de instituições internacionais, como a Frick Collection, de Nova York, e a Gemaldegalerie, de Berlim, entre outras. A iniciativa reúne ainda fatos sobre a vida pessoal de Vermeer e sua relação com a religião. “Ele é um dos maiores artistas de todos os tempos porque foi capaz de criar uma intimidade nunca vista antes. Suas cenas capturam o momento e o tornam atemporal”, define Taco Dibbits, diretor do Rijksmuseum.
É tudo tão deslumbrante que fica difícil apontar destaques. Estão lá A Leiteira (1659), A Menina com Chapéu Vermelho (1665) e O Geógrafo (1669), além da imagem mais famosa, Moça com Brinco de Pérola (1665), cujo texto descritivo na exibição tem chamado a atenção do público. O co-curador Peter Roelofs defende que o famoso brinco não era de pérola, mas uma peça de vidro em formato de lágrima. A tese é reforçada por um motivo óbvio: uma pérola na proporção retratada no quadro teria sido importada da Índia e custaria uma fortuna. Vermeer, como se sabe, costumava pintar para clientes sem grandes posses e nunca mencionou a palavra “pérola” no título. A “Mona Lisa holandesa”, que sempre foi conhecida como Garota de Turbante, só ganhou a referência à jóia na retrospectiva realizada em 1995 no Mauritshuis.
A especialista Paula Braga, professora de Estética da Universidade Federal do ABC, acredita que o valor do pintor barroco não é apenas sua incrível expertise, mas o trabalho de artesão e a sofisticação na abordagem do cotidiano. “Ele recriava ambientes silenciosos e delicados. E foi muito ajudado pela sociedade. Na Holanda, a classe média podia adquirir sua arte porque havia um mercado incipiente, o que não acontecia em outros países europeus. Na França, apenas nobres e mecenas faziam encomendas aos artistas”, diz ela. Para Paula, a exposição no Rijkmuseum é uma oportunidade inédita de estabelecer uma visão conjunta dessas obras. “Reuni-las todas no mesmo local cria um ambiente único de percepção que remete à interioridade dos personagens.”

Outra característica que chama a atenção é a pequena dimensão das pinturas. A maioria mede menos de um metro de largura, por um metro de cumprimento. Eram feitas para paredes normais, não palácios. O tamanho também facilitava a aplicação de sua técnica, que consistia em projeções de imagens sobre a tela por meio de uma câmara escura – um precursor da fotografia. A polêmica tese foi apresentada pelo artista David Hockney no livro O Conhecimento Secreto, de 2001. O britânico pesquisou os mestres do passado, e encontrou indícios do uso de espelhos e aparelhos ópticos em artistas hiperrealistas, como Leonardo Da Vinci, Velázquez e Caravaggio. Vermeer teria aprimorado essa método por meio de novos experimentos. O conceito é explicado no premiado documentário Tim’s Vermeer, em que o inventor Tim Jenison decide “pintar um quadro de Vermeer” sem nenhum conhecimento artístico. Ao longo de cinco anos, ele se muda para Delft e parte em busca da sua obsessão. O filme está disponível no Youtube e, sem dar spoiler, é possível dizer que o resultado é impressionante. O talento de Vermeer, portanto, não estava restrito à arte – ele também foi um gênio da tecnologia.