30/09/2022 - 9:30
Exatamente um século depois da Marcha de Mussolini sobre Roma, a Itália volta a esse passado de extrema-direita, ao se render a Giorgia Meloni, 45 anos, que em pouco mais de um mês assumirá o posto de primeira-ministra do país. A maioria dos italianos votou nessa “novidade” na esperança de chegar a alguma estabilidade econômica e política. O partido de Meloni, Irmãos da Itália, que em 2018 teve 4% dos votos, agora somou 26% — convertidos em 44%, graças à coalizão com a Liga de Matteo Salvini e a Força Itália de Silvio Berlusconi. Se algumas arestas entre os três forem aparadas, os radicais de direita serão suficientes entre si para aprovar ou rejeitar propostas no Parlamento, sem qualquer necessidade de negociação com opositores. Essa, sim, é uma novidade na política italiana – e um grande temor para toda a Europa: a terceira economia do continente nas mãos de uma autoproclamada neofascista.
Bilhões como garantia
Lideranças progressistas acompanham atônitas as tentativas de Meloni se apresentar com alguma moderação, depois de anos se insurgindo contra a União Europeia e batendo forte em imigrantes e minorias em geral, nos mesmos moldes de Salvini, enquanto também disfarça laços que foram bem mais estreitos com o presidente russo Vladimir Putin (amigo de primeira hora de Berlusconi). Para o professor Roberto Goulart Menezes, do Instituto de Relações Internacionais da UNB, internamente a coalizão “puro sangue fascista” deve prevalecer no Parlamento, desde que Salvini (ex-vice-premiê) e Berlusconi (ex-primeiro-ministro de três mandatos) se vejam contemplados com cargos importantes, para recolocar seus partidos em evidência.
O medo maior com relação a Giorgia Meloni, “chauvinista e xenófoba”, com dificuldades de agenda com a União Europeia, é de que “jogue gasolina no fogo”, impondo radicalismos como fechar o país totalmente a imigrantes e expulsar quem esteja dentro, por exemplo. “Se com Berlusconi a Itália já sentiu o gosto dos radicais de direita, agora há uma diferença determinante: com ele, havia tensão, mas não se temia pela democracia; com Meloni, há tensão e ela quer romper com a democracia”, observa o analista.
“A França barrou a extrema-direita porque não vive a instabilidade da Itália, de troca-troca em um parlamentarismo capenga” Roberto Goulart Menezes, professor de Relações Internacionais na UNB
Externamente, a Europa desconfia de Giorgia Meloni, mesmo mostrando apoio à Ucrânia, inclusive com o fornecimento de armas. Ela destoa de importantes lideranças democráticas do continente, ou pior: causa arrepios ao se aproximar de radicais de direita como Viktor Orbán, primeiro-ministro da Hungria que puxou a fila de cumprimentos à líder italiana, seguido do colega polonês Mateusz Morawiecki. Os três já desenham um eixo ultraconservador e, não à toa, Ursula von der Leyen, a presidente do Conselho Europeu, adiantou-se à eleição na Itália e advertiu que qualquer medida antidemocrática por parte do próximo governo italiano levaria a cortes do fundo da União Europeia para recuperação pós-pandemia dos países do bloco.
Dos 750 bilhões de euros desse fundo, a Itália é a maior beneficiária, com direito a 191,5 bilhões (122,6 em empréstimos e 68,9 em subvenções, sem restituição). Por outro lado, debilitar a economia que tomou o lugar do Reino Unido no continente, e que está totalmente integrada a outros países do bloco, seria muito mais delicado do que penalizar a Hungria, por exemplo, já declarada “democracia não plena” e sujeita a sanções “leves”. Esses bilhões de euros, portanto, deverão servir como lastro para Meloni não sair totalmente dos trilhos, nem fazer valer sua indisfarçável vontade de formalizar um “Brexit à italiana”, mesmo tendo o Reino Unido como modelo de fiasco, sem dividendo algum. O interesse das partes é pelo diálogo, assinala Goulart Menezes: “Esse bate-boca pode prosseguir, sem que União Europeia e Itália se afrontem de fato”, diz. “É retórica, sem que nem um nem outro cruze linhas, porque o que prevalece, no fundo, é o jogo político.”