03/12/2021 - 9:30
Em 27 de janeiro de 2013, 242 jovens perderam a vida e mais de 636 ficaram feridos na Boate Kiss, em Santa Maria (RS). O endereço da popular casa noturna, no centro, virou símbolo de um trauma profundo e incurável. A cidade, conhecida pela vida universitária, nunca mais esqueceu a perda dos seus estudantes por causa de uma sequência de erros criminosos e vem lutando e esperando por justiça desde então. Num sopro de esperança, começou, quarta-feira, dia 10, em Porto Alegre, o julgamento, presidido pelo juiz Orlando Faccini Neto, de quatro acusados pelo incêndio: os sócios da Kiss, Elissandro Spohr e Mauro Hoffmann, o vocalista da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos, e o produtor musical Luciano Bonilha Leão, que ativou o fogo de artifício na boate. Todos responderão por homicídio simples com dolo eventual consumado pelo número de mortos e tentado pelo número de feridos. Mesmo que os réus saiam condenados num tribunal que pode durar duas semanas e ser um dos mais longos da história, o sentimento de impunidade parece já estar instalado nas famílias das vítimas.

Nestes quase nove anos de espera nasceu a Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), que tem enfrentado uma luta árdua por justiça. Em 2013, 28 pessoas foram apontadas pelo inquérito policial como responsáveis pela tragédia, mas só quatro acabaram denunciadas pelo Ministério Público por homicídios com dolo eventual, qualificado por fogo, asfixia e torpeza. Entre os que escaparam da denúncia estão o então prefeito da cidade, Cezar Schirmer, e o comandante do 4º Comando Regional de Bombeiros de Santa Maria, tenente-coronel Moisés Fuchs, além de outros poderosos, que permitiram à Kiss funcionar de maneira irregular. Houve toda uma cadeia de irresponsabilidades que levou à tragédia e que acabou deixada de lado na evolução do inquérito. Para o diretor-executivo da AVTSM, Paulo Carvalho, pai de Rafael Carvalho, que faleceu na boate aos 32 anos, isso não exclui qualquer responsabilidade dos quatro réus, que devem ser julgados com severidade, mas é uma questão que não pode ser negligenciada. A AVTSM está entrando com ação na Corte Interamericana para que os demais indiciados sejam responsabilizados. “É preciso dar um basta à impunidade”, diz. “E esse ‘basta’ é dado quando aquele que comete crime é punido. E cria o receio para que outros gananciosos e irresponsáveis não cometam os mesmos crimes.”
A médica veterinária Luiza Mathias, uma das sobreviventes da tragédia, tinha 19 anos na época e estava terminando o primeiro ano de faculdade. “A festa que teve na Kiss naquela noite era da nossa turma, da minha turma da veterinária, junto com pessoas de outros cursos”, lembra. Ela estava próxima ao palco com amigos quando o incêndio começou, viu tentarem usar o extintor, que não funcionava, e relatou tentativas de apagar o fogo com água. Luiza perdeu amigos na tragédia e precisou fazer tratamento psiquiátrico e psicológico para superar os traumas e a depressão. Sobre o julgamento ela diz que espera que “os culpados sejam responsabilizados”. “A gente não quer vingança. Essa dor vai continuar o resto da vida. Tem culpados que estão livres, tem culpados que não vão ser julgados, né? Então pra mim isso já começou errado”, diz.
Outro sobrevivente da tragédia, Ezequiel Real, conhecido por ser um dos “heróis da marreta”, rapazes que quebraram as paredes da antiga boate para socorrer mais vítimas, afirma não ter sentimento de ódio por ninguém, mas que a justiça precisa chegar para todos. Uma das sobreviventes da tragédia que está em Porto Alegre acompanhando o julgamento é Cristiane Clavé, que até hoje enfrenta sequelas pulmonares por causa do incêndio. “Está tudo muito tenso e difícil. A aproximação desse júri reviveu a dor com mais intensidade”, afirma. “O apoio dos meus filhos e do meu marido é o que me segura. Não posso reclamar, pois não tenho marcas externas, mas não posso rir com meus filhos porque começo a tossir e tenho falta de ar. Isso não vai mudar. Nem com tratamento, nem com condenação.”

Segundo o advogado da AVTSM, Pedro Barcelos, a responsabilidade criminal dos quatro réus está bem caracterizada. “Deixamos claro que a boate estava lotada, não tinha extintores funcionando e que foi permitido o uso de fogos”, afirma. “Durante o julgamento vamos demonstrar que as práticas dos acusados se enquadram no dolo eventual.” Já para o advogado de Mauro Hoffmann, Mário Cipriano, “a acusação não se sustenta”. “Foi um arranjo criado pelo Ministério Público, que fiscalizou a boate e autorizou seu funcionamento, assim como os bombeiros e a Prefeitura”, diz. “O objetivo foi tirar a responsabilidade de si próprio e dos demais órgãos públicos.” Em breve veremos se alguma justiça será feita.