Em carta ao seu mestre George Izambard, o jovem poeta francês Arthur Rimbaud utilizou uma expressão que o marcaria para sempre: “eu sou um outro”. Pois o poeta português Fernando Pessoa teria razões de sobra para ser bem mais ambicioso: “eu sou muitos outros”, poderia ter escrito. Uma nova e definitiva biografia revela que Pessoa tinha um número ainda maior de heterônimos, alter-egos e pseudônimos do que se imagina.

O extraordinário livro de Richard Zenith, que tem mais de mil páginas e levou três décadas para ser concluído, aprofunda a análise sobre a extensa obra do poeta, por meio de acesso a material inédito e entrevistas com descendentes de parentes e amigos, além de um novo exame sobre o famoso baú que Pessoa deixou. Nesse impressionante arquivo, que soma cerca de 25 mil papéis – hoje alocados na Biblioteca Nacional de Portugal –, ele guardava os registros de suas muitas vidas.

Segundo Zenith, o “jogo” de ancorar sua personalidade a heterônimos começou ainda na infância. Aos seis anos, escrevia cartas para si próprio assinadas por um cavaleiro imaginário batizado de Chevalier de Pas. Em uma de suas viagens a Durban, na África do Sul, onde Pessoa viveu por nove anos quando criança, o biógrafo descobriu seu primeiro registro oficial: foi sob o heterônimo de Karl P. Effield que ele publicou o primeiro poema, em inglês, no jornal da cidade.

PERSONAGENS Fernando Pessoa (terno preto) em Lisboa, com amigos. Aos seis anos (abaixo), já escrevia cartas que tinham ele próprio como destinatário (Crédito:Divulgação)
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Zenith faz radiografias dos “muitos Pessoas” que surgiram ao longo dos anos. Na sua obsessão por diluir-se entre tantas personalidades, chegava a criar uma história completa para contextualizar o personagem. Dava-lhe um passado, família, amores. Dezenas deles eram descritos de maneira superficial, Raphael Baldaya, “astrólogo e filósofo de longas barbas”. Outros, no entanto, como o Barão de Teive, ganhou uma complexa existência. Pessoa escreveu para o alter ego um diário inteiro, onde explica inclusive as causas que o levaram a tirar a própria vida.

Entre tantos exemplos, o único pseudônimo feminino foi Maria José, senhora corcunda que morrera de tuberculose. Há uma única carta assinada por ela: a declaração de amor dirigida a um belo serralheiro, que todos os dias passava em frente a sua janela a caminho do trabalho. Ao todo, Pessoa escreveu sob a alcunha de mais de cem autores fictícios.

Os heterônimos aos quais realmente se dedicou foram Alberto Caeiro e seus discípulos, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Caeiro tinha até “residência”: vivia em uma casinha branca, no campo. Reis era médico, devoto dos clássicos. Já Campos, um engenheiro naval que viajava o mundo e encantava-se com homens e mulheres, era o mais intenso: dava entrevistas, escrevia artigos e publicava ácidos comentários políticos.

PESSOA: UMA BIOGRAFIA Richard Zenith Companhia das Letras. Preço: R$ 199

O biógrafo brasileiro José Paulo Cavalcanti Filho, autor de Fernando Pessoa: Uma Quase-Autobiografia, defende a tese de que Pessoa não criava personagens, mas incorporava características de pessoas próximas. “Ele não tinha imaginação. Até os nomes dos personagens vinham de gente que existia de verdade, pessoas próximas ou escritores por quem ele tinha admiração”, afirma o autor, cuja obra já foi traduzida para doze idiomas.

Para Zenith, os escritos de Pessoa se confundiam com sua existência, gerando o que ele chama de “vida-obra”. O solteirão convicto, que falava em público sobre literatura, política e religião, guardava sua privacidade a sete chaves. A contradição que expunha por meio de seus “outros”, porém, gerava confusão até entre os que conviviam com ele. Em 1935, meses antes de morrer, criticou duramente o governo português em um artigo de jornal.

O curioso é que ele havia acabado de receber um prêmio das mesmas autoridades pelo tom ufanista de Mensagem, seu único livro publicado em vida. Pessoa era um homem tão cheio de contradições que, muitas vezes, esquecia de se esconder em seus heterônimos para externá-las.