Cristina Kirchner foi condenada a seis anos de detenção por fraudes nas gestões dela e do marido, Néstor, quando ocuparam a Presidência da Argentina entre 2003 e 2015. Aos 69 anos e beneficiando-se de múltiplos recursos a serem acionados por seus advogados, ela dificilmente irá presa, mas a sentença representou um duro golpe ao kirchnerismo. A mancha da corrupção aprofunda o racha no Partido Justicialista (peronista), que comanda o país por meio do presidente Alberto Fernández, por sua vez brigado com Cristina, sua própria vice. Enquanto isso, a inflação bate recorde atrás de recorde e deve fechar 2022 ultrapassando os 100% ao ano. A crise é tão profunda que Lula, o presidente eleito no Brasil, surge como uma tábua de salvação para Fernández ao menos terminar o seu mandato, no fim de 2023.

Ainda que o país esteja à deriva, com metade da população passando fome, o kirchnerismo resiste pelas raízes profundas fincadas no peronismo, observa Flavia Loss, professora de Ciência Política da FESPSP. Há uma nostalgia dos anos 1950, época de ouro do movimento, diz a analista. “Ocorre que não se pode voltar ao peronismo antigo, do qual o kirchnerismo se aproveita mas não avança, com propostas mais atualizadas.”

Flavia não acredita que a condenação de Cristina a seis anos de cadeia funcione como uma pá de cal simbólica no kirchnerismo, “ainda muito latente” no país vizinho. “Peronismo e kirchnerismo funcionam como um bastião diante de governos neoliberais e, por isso, tanto ela como Fernández não conseguem se separar totalmente. A questão é se o kirchnerismo terá forças para se manter e seguir adiante com o Máximo, filho dela, atualmente deputado nacional pela província de Buenos Aires e líder do governo. E mais: para onde irão a centro-esquerda e a esquerda?” O quadro político dependerá da próxima eleição, diz a professora, em 29 de outubro do ano que vem.

NA LONA Alberto Fernández tenta terminar o mandato de presidente em 2023 e aguarda apoio do colega Lula (Crédito:GUSTAVO GARELLO)

A crise se aprofunda com a desvalorização da moeda e a troca de ministros da Economia. O caos cambial levou o país a criar pelo menos 14 cotações para a moeda americana, incluindo conversões apelidadas de “dólar Coldplay”, “dólar Catar” e “dólar Luxo”. A dívida de US$ 40 bilhões com o FMI, agravada num cenário de falta de divisas, praticamente deixou o país sem saída, precisando recorrer atualmente à China, disposta a estender sua influência na América do Sul, financiando obras de infraestrutura no país e abrindo relações comerciais para além da soja e da carne.

Alberto Fernández está na lona, diz Flavia. E, em vez de os argentinos falarem sobre candidaturas, o que se discute é se o presidente conseguirá terminar o mandato. “Daí a importância da eleição de Lula, uma esperança de salvação para o colega vizinho. Aliás, para a região, que sente falta de uma liderança que acalme os ânimos, que atue na intermediação sem intromissão, dentro da legalidade democrática.”

O Brasil tradicionalmente ocupa esse papel e a expectativa pela posse de Lula é muito grande, continua a professora, assim como por mais articulações progressistas, em defesa de instituições contra extremistas de direita altamente beligerantes. “Neste momento, vínculos são vistos com alívio pela Argentina, que pode conseguir respaldo econômico a reboque, por exemplo, de uma retomada de forças do Mercosul, que foi desintegrado.”

Fraude patagônica

Cristina foi condenada por fraude na administração pública, favorecendo um sócio e mais dez funcionários envolvidos em licitações para construir rodovias na província de Santa Cruz, reduto dos Kirchner. Mas não pode ser presa se mantiver o mandato de vice-presidente da Argentina, que termina em dezembro de 2023. E, como cabem recursos, ainda pode ser eleita em algum cargo executivo ou legislativo nas eleições gerais do ano que vem, o que lhe garantiria a extensão da imunidade. Se eventualmente tiver de cumprir a pena de seis anos, poderá ser em casa, porque completa 70 anos em fevereiro de 2023 e terá direito ao benefício.