Um navio-aeródromo de passado glorioso, que fazia parte da Marinha da França entre a década de 1960 e 2000, vagueia como um casco-fantasma pelos mares, sem destino certo e a ponto de ser afundado de vez. O porta-aviões, como os NAe são conhecidos popularmente, foi chamado de “Foch” em homenagem ao comandante dos Aliados na Segunda Guerra, Ferdinand Foch, e participou de missões importantes no Pacífico, no Mar Vermelho e no Egeu, até ser comprado por US$ 12 milhões (cerca de R$ 60 milhões, hoje) pelo Brasil, aonde chegou em 2001. Rebatizado de “São Paulo”, combinou seus deslocamentos pela costa com problemas recorrentes, até virar uma assombração para órgãos públicos, empresas e ambientalistas. São muitas as denúncias nacionais e internacionais sobre as toneladas de resíduos tóxicos que escorrem pelas brechas de seu casco, extremamente perigosos à vida marinha. De certo é que, após tantas idas e vindas, o São Paulo está condenado.

A decisão da Marinha do Brasil, que assumiu uma embrulhada operação em 20 de janeiro, é pelo afundamento controlado. A rebocagem abriria ainda mais as “feridas” do São Paulo, com vazamentos de amianto, por exemplo, banido pelo mundo todo por ser cancerígeno. Uma nota oficial de 1º de fevereiro, assinada em conjunto pelo Ministério da Defesa, Advocacia-Geral da União e a Marinha do Brasil, afirma que afundar o que resta do porta-aviões é inevitável — mesmo após ter recebido uma oferta de R$ 30 milhões pela carcaça, por parte de uma empresa saudita.

O São Paulo, substituto do Minas Gerais (1960-2002), foi driblando problemas desde que chegou. Em 2014, foi entocado na base da ilha das Cobras, no Rio de Janeiro. O maior navio de guerra do Hemisfério Sul — 265 metros de comprimento e 33 mil toneladas de deslocamento à plena carga — recebeu uma proposta para sua modernização, mas foi descartada em 2017 pelo alto custo de R$ 1 bilhão que seria gasto na reforma. Em 2021, chegou a ser arrematado por cerca de R$ 12,5 milhões pela empresa turca Sök Denizcilik Tic Sti (Sök), especializada em desmonte de navios, para ser reaproveitado como sucata. O valor foi visto com estranheza, uma vez que o site turco SÖZCÜ informa que o arremate foi por US$ 75 a tonelada naval, em vez dos US$ 450 pagos à época no mercado de reciclagem. De toda forma, em 4 de agosto de 2022, o São Paulo estava no Arsenal da Marinha, no Rio de Janeiro, preparado para ser rebocado para o estaleiro de Aliağa, na Turquia. Foi aí que sua viagem teve início — e o seu fim também.

Circulando sem rumo

Quando o comboio alcançou a costa do Marrocos, o governo turco barrou sua entrada no estreito de Gibraltar. A quantidade de contaminantes teria sido subestimada pelas autoridades brasileiras, que diziam ser menos de dez toneladas. Ambientalistas, porém, calculavam em pelo menos 300, pela comparação com seu navio-irmão Clemenceau. Entidades turcas ligadas à proteção de fauna e flora alertaram sobre o perigo de liberação de amianto e até restos de material nuclear, porque o navio foi contaminado nos testes nucleares da França, no Pacífico. Segundo a Marinha do Brasil, os franceses fizeram a desamiantação ainda na década de 1990, com a retirada de 55 toneladas de elementos contaminantes.

O comboio teve de retornar, por determinação do Ibama, e ficou pelas proximidades do porto de Suape, em Pernambuco. Foi proibido de atracar pela Agência do Meio Ambiente do Estado. Em outubro de 2022, o navio já não tinha rumo e a rebocadora MSK Maritime Services & Tradingalegou ameaçava largar o casco à deriva. Até que, em 10 de janeiro, alegando já ter gasto US$ 2 milhões de combustível circulando pelos mares sem nenhuma solução à vista, “abandonou o barco” e deixou a empreitada.

A carcaça do São Paulo foi levada a uma área dentro das Águas Jurisdicionais Brasileiras (AJB), a 350 quilômetros da costa, onde a profundidade está em torno de cinco mil metros, acompanhada pela fragata União e pelo navio de apoio Purus, substituto do rebocador da MSK. Em 1º de fevereiro, o comboio estava nessa zona, a meio caminho da África, segundo dados de monitoramento online do Greenpeace. No dia seguinte, no entanto, apesar da própria Marinha ter reconhecido o perigo de realizar outros deslocamentos, o mapa em tempo real mostrava o navio em rodeios, novamente próximo da costa de Pernambuco.

Acusações sem soluções

Foram diversos prós e contras em relação ao afundamento, contestado pelo Ministério do Meio Ambiente e impedido por ação do Ministério Público Federal de Pernambuco (que, por sua vez, foi revertida pela Justiça Federal do próprio Estado). Internacionalmente, a belga Shipbreaking, de proteção aos oceanos, apontava “negligência criminosa”, afirmando ainda que o Brasil violaria três tratados ambientais internacionais se afundasse o casco carregado de resíduos tóxicos altamente poluentes.

Literalmente muita água correu sob o navio, um fantasma incômodo e rodeado de acusações ligadas ao governo Bolsonaro. No fim de 2022, já se colocava ao largo dos riscos e das urgências; ao governo turco, que teria quebrado contrato; à empresa que teria certificado a segurança para a Marinha; à companhia turca que comprou o casco em leilão e lavou as mãos; à seguradora que alegou impossibilidade de cumprimento de contrato; à rebocadora que abriu mão de levar o navio-fantasma a algum destino; às autoridades judiciais que contrapõem ações que não resolvem a questão; aos órgãos públicos que não apresentaram soluções. Ambientalistas também se dividiram quanto ao menor prejuízo na contaminação inevitável dos mares: tentar consertar o casco ou afundar o que restasse do navio. De glorioso, o São Paulo virou uma assombração dos mares.