16/12/2022 - 9:30
Perseverança e amor, em meio às renúncias e medos, marcam as rotinas das mães e pais de filhos com câncer. Quando se enfrenta essa doença, a família toda adoece junto e qualquer novidade no mundo da medicina é agarrada. Assim aconteceu com Kiona e James, pais da adolescente britânica Alyssa, de 13 anos, que é de Leicester, na Inglaterra.
Diagnosticada com um tipo de câncer muito agressivo, a leucemia linfoblástica aguda de células T, em maio de 2021, Alyssa submeteu-se à quimioterapia e a um transplante de medula óssea que não conseguiram êxito na regressão da doença.
O que aconteceu em seguida era impensável há apenas alguns anos. A equipe do Great Ormond Street Hospital, uma unidade infantil em Londres, aplicou em Alyssa uma tecnologia chamada “edição de base”, inventada há seis anos. A técnica permite aos cientistas ampliar uma parte determinada do código genético e, em seguida, alterar a estrutura molecular, convertendo-a em outra e alterando as instruções genéticas. A numerosa equipe de médicos recorreu à engenharia biológica para viabilizar tal façanha.
“A terapia com células CAR-T aplicada na paciente inglesa é desafiadora e pioneira porque utiliza células T de doadores saudáveis e não do próprio paciente, como é o caso da terapia com células CAR-T aprovadas pelo FDA e Anvisa e disponíveis comercialmente”, explica a pesquisadora da FMUSP, Luciana Barros.
A primeira edição básica desativou o mecanismo de direcionamento das células T para que não atacassem o corpo de Alyssa. A segunda removeu uma marcação química, chamada CD7, que está em todas as células T. A terceira modificação foi uma capa invisível que impedia que as células fossem mortas por uma droga quimioterápica.
O estágio final da modificação genética instruiu as células T a rastrear qualquer coisa com a marcação CD7 para que destruísse todas as células T de seu corpo, incluindo as cancerígenas. As células T são as células que combatem o câncer e são usadas para a produção das células CAR-T, mas nesse caso não poderiam ser usadas, porque eram as células malignas.

A pesquisadora da FMUSP explica que utilizar células T de outras pessoas diretamente não é possível, porque elas atacariam os órgãos da paciente, podendo levá-la à morte. Então, o que os pesquisadores fizeram foi remover três genes das células T de um doador saudável para evitar que essas atacassem a doadora, e ainda inseriram o CAR, que reconhece especificamente as células da leucemia. Utilizaram para isso a técnica conhecida como CRISPR, desenvolvida na última década pela cientista francesa Emmanuelle Charpentier e pela norte-americana Jennifer Doudna, o que garantiu à dupla o prêmio Nobel de Química em 2020. A edição de quatro genes em linfócitos T é um desafio grande pela complexidade da edição do genoma e viabilidade das células. Essa tecnologia poderia viabilizar o que os geneticistas chamam de células CAR-T ‘off-the-shelf’, na qual um banco de células CAR-T de doadores saudáveis ficaria disponível para inúmeros pacientes, com custo menor, tempo para tratamento mais rápido e possibilidade de tratar pacientes que não são candidatos a essa terapia.
Durante o tratamento, a adolescente britânica ficou vulnerável a infecções, pois as células projetadas atacaram tanto as células T cancerígenas em seu corpo quanto aquelas que a protegiam de doenças. Mas, depois de um mês, Alyssa estava em remissão e recebeu um segundo transplante de medula óssea para regenerar seu sistema imunológico. Então passou 16 semanas no hospital e não pode mais se encontrar com seu irmão, porque ele ia à escola e isso aumentava o risco de contrair infecções. Houve preocupações depois que o check-up de três meses encontrou sinais do câncer novamente. Mas, nos dois exames seguintes, não havia sinais da doença.
Kiona, a mãe, afirmou em entrevista à rede BBC que no ano passado temeu o Natal, “pensando que este seria o último com ela”. A família espera que o câncer nunca volte, mas já agradece pelo tempo que ganharam com a filha.
“Ter este ano extra, estes últimos três meses em que ela esteve em casa, já foi um presente”, diz Kiona.
Alyssa faz planos: quer aproveitar esse Natal com a família, ser dama de honra no casamento de sua tia, voltar a andar de bicicleta, retomar a escola e “apenas fazer coisas normais”. “Você aprende a valorizar as coisas pequenas. Estou tão grata por estar aqui agora”, diz Alyssa e completa: “É uma loucura. É incrível poder ter essa oportunidade, estou muito agradecida por isso e vai ajudar outras crianças também, no futuro”.