09/12/2022 - 9:30
Há sete anos, o primeiro-ministro canadense Justin Trudeau ganhou os holofotes pela paridade de gênero estampada na fotografia da equipe do seu novo governo. A equivalência no número de homens e mulheres, um ideal óbvio mas raro no meio político, era vista pela primeira vez em uma potência mundial. Indagado sobre os motivos que o levaram a inovar, Trudeau recorreu à inevitável concisão diante de uma pergunta tão óbvia: “É 2015”. De lá para cá, o debate sobre a ocupação de espaços por lideranças femininas cresceu, assim como a pressão para que chefes de Estado eleitos em ondas progressistas transformassem o discurso em ação.
As mulheres estão longe de conquistar a representação ideal, mas a passos lentos a luta começa a surtir efeitos — em solo europeu, o presidente da França, Emmanuel Macron, replicou o modelo canadense em seus dois mandatos e o premiê da Espanha, Pedro Sánchez, nomeou mais mulheres do que homens no alto escalão.

No Brasil, Lula já foi ousado ao apostar na eleição de uma sucessora, há 12 anos, que foi a primeira mulher a comandar o País. Agora, não pretende passar ao largo dessa tendência mundial. O presidente eleito anunciou a aliados a decisão de colocar, no início do mandato, um terço da Esplanada dos Ministérios sob o comando de mulheres e depois ampliar gradualmente essa proporção.
Não poderia ser diferente, afinal a apertada vitória sobre Jair Bolsonaro em outubro não foi só dele, mas também de Gleisi Hoffmann, Simone Tebet, Marina Silva, Tereza Campello, Rosângela Silva, a Janja, e tantas outras. Entre os votos que garantiram ao petista o terceiro mandato ao Planalto, incontáveis foram conquistados por um grupo de mulheres fortes e influentes que minimizaram diferenças ideológicas, uniram-se contra o extremismo, enfrentaram a violência política e tomaram as ruas em uma campanha pela democracia, atuando como fiadoras de Lula em áreas como economia e meio ambiente perante cidadãos, mercado e comunidade internacional.

São as mesmas mulheres, aliás, que constroem a várias mãos um plano emergencial a ser entregue a Lula neste domingo, 11, quando a equipe de transição encerra os trabalhos no Centro Cultural Banco do Brasil, para restabelecer o funcionamento da máquina pública, que está à beira do colapso.
As digitais dessas mulheres estão gravadas em projetos que podem devolver ao País o prestígio internacional — portanto, mais do que agir nos bastidores, elas merecem estar no centro das decisões, com voz de comando. A cara da política nacional, afinal, precisa começar a refletir o rosto da sociedade brasileira, formada em sua maioria pelo sexo feminino (elas são 51,1% da população, enquanto os homens representam 48,9%, segundo o IBGE).
Se Lula cumprir a promessa de entregar 11 dos 33 ministérios previstos a lideranças femininas, estreará melhor do que nos dois primeiros mandatos. Em 2002, dos 34 ministros anunciados pelo petista no início do governo, somente quatro eram mulheres. Quatro anos depois, em 2006, a conta foi a mesma.
Uma guinada sinalizaria ainda uma nova “marca”, já que o petista não tratou da paridade de gênero nos ministérios em seu plano de governo e esquivou-se do assunto durante a campanha. “Não sou de assumir compromisso, de me comprometer a fazer metade, indicar religioso, indicar mulher, indicar negra, indicar homem.
Ou seja, você vai indicar as pessoas que têm capacidade para assumir determinados cargos”, justificou-se em debate promovido pela Band, em agosto. Na ocasião, a fala recebeu críticas mesmo de aliadas, que apontaram o óbvio: há mulheres competentes para assumir qualquer cargo no Brasil.
O entorno de Lula, aliás, comprova o cacife de uma série de lideranças femininas para assumir postos nos ministérios. Cotada para voltar ao cargo, a ex-ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome Tereza Campello chegou a receber, em 2014, em nome do governo brasileiro, o reconhecimento da FAO/ONU pelo alcance de metas que retiraram o Brasil do Mapa da Fome.
Oito anos depois, na transição, a economista deparou-se com a destruição dos programas que reduziram a miséria no País. À ISTOÉ, Campello afirma que Bolsonaro “não tem uma política social” e classifica a postura do presidente como “irresponsável” e “criminosa”. A ex-ministra aponta, por exemplo, que no Orçamento enviado pelo capitão ao Congresso o funcionamento do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) está garantido por apenas 10 dias em 2023.
Campello reforça que, pelo desenho da equipe de transição, o governo Lula enfrentará a pobreza de forma “multidimencional”. “Essa ideia de que política social é só o cartão com o dinheiro foi o erro do governo Bolsonaro. Precisamos de um conjunto de ações. As condicionalidades do Bolsa Família serão retomadas.
Vamos garantir que as crianças irão para as escolas, se alimentarão nos centros de ensino, terão carteira de vacinação em dia e atendimento médico regular”, pontua. “Além disso, em gestões anteriores, fizemos um trabalho maravilhoso, casado com a área de educação, que foi o Pronatec, o qual voltará remodelado. Investiremos em cursos profissionalizantes. Viremos com cisternas, Luz para Todos, Minha Casa, Minha Vida.
É preciso pensar que as pessoas não são pobres somente de renda, mas também no acesso ao saneamento básico, à educação. É um caminho de inclusão”, emenda. Apesar do discurso afiado, Campello desconversa sobre integrar o alto escalão. “Já estamos participando do governo. Na transição, tivemos muito trabalho para desarmar todas as bombas que Bolsonaro armou. Acredito que o governo vá tirar o Brasil de novo do Mapa da Fome e fará isso com mais eficiência e muito mais rapidamente.”
A ex-ministra divide o gabinete instalado no CCBB com outra candidata ao Ministério do Desenvolvimento Social: Simone Tebet. Depois de se destacar na CPI da Covid pela desenvoltura, perspicácia e preparo técnico, a senadora emedebista ganhou musculatura política ao se posicionar como “o nome do centro” e conquistar 5 milhões de eleitores no primeiro turno ancorada em um discurso pró-estabilidade fiscal, aliado à responsabilidade social. No segundo turno, Tebet atuou para arrefecer a resistência do mercado a Lula e marcou presença ao lado do petista em palanques, numa atitude que a diferenciou de lideranças históricas da centro-esquerda, como Ciro Gomes. Não à toa, cresceu no conceito do presidente eleito e ouviu dele a garantia de que só não participará da Esplanada se não quiser.
Papel de Simone Tebet
Desde a campanha, Simone disse que a força das mulheres seria fundamental para eleger o próximo presidente. Orgulhou-se de compor uma chapa com a senadora paulista Mara Gabrilli. E centrou sua campanha na valorização de bandeiras femininas. Conseguiu esse capital mesmo enfrentando problemas com a própria legenda.

O MDB resiste em bancá-la. Velhas raposas do partido, como Renan Calheiros, Eduardo Braga e Helder Barbalho, não querem perder espaço. Buscam emplacar aliados em ministérios como Minas e Energia e Desenvolvimento Regional (ou Integração Nacional) e argumentam que, se Tebet for mesmo a escolhida para integrar o governo, deveria entrar no jogo pela cota de Lula, e não da sigla.
Do outro lado, petistas negam nutrir restrições ao nome de Tebet, mas admitem que não a querem no ministério que controla o Bolsa Família, principal vitrine da legenda. O temor faz sentido. Tebet saiu da disputa eleitoral muito maior do que entrou e, portanto, ganhou terreno como uma presidenciável em potencial para 2026, o que esbarra no plano do PT de lançar o sucessor de Lula que, ao que tudo indica, será Fernando Haddad, cotado para a Fazenda.

Em meio ao fogo cruzado, chegou-se a discutir a acomodação de Tebet na Educação ou no Meio Ambiente. A primeira saída agradaria a senadora, que, aliás, chegou a incorporar ao plano de governo de Lula a proposta de ajudar municípios a zerar filas na educação infantil para crianças de três a cinco anos e implantar, em parceria com os estados, o ensino médio técnico, garantindo uma poupança de R$ 5 mil ao jovem que concluí-lo.
Além disso, funciona sob o guarda-chuva do ministério o poderoso FNDE, que contará com um orçamento de R$ 53,1 bilhões em 2023. A alternativa, porém, esbarra em Izolda Cela, governadora do Ceará e favorita para o posto.

Eleita vice-governadora em 2018, Izolda assumiu o comando do estado no meio do ano, quando Camilo Santana, homem forte do PT, renunciou ao governo para concorrer ao Senado. À época, ela tinha a garantia de que concorreria à reeleição, mas acabou traída pelo partido que integrava, o PDT, o qual optou pela candidatura de outro filiado: Roberto Cláudio, que acabou derrotado pelo petista Elmano Férrer. Agora, fora dos quadros pedetistas, Izolda conta com a bênção tanto de Camilo como de Elmano para ascender ao MEC.
Lula vê o nome dela com bons olhos. Entende que a escolha valorizaria a educação do Nordeste, uma vez que o seu estado ostenta excelentes indicadores: das 10 melhores escolas do Brasil nos anos iniciais (1º ao 5º ano), todas são cearenses. Izolda tem grande responsabilidade nesses resultados, que repercutem inclusive no exterior.
No Meio Ambiente, a situação se complica ainda mais para Tebet. O cargo, segundo petistas, tem dona: Marina Silva, autoridade no assunto, que ostenta o feito de ter integrado a lista, de 2008, das 50 personalidades do jornal britânico “The Guardian” que poderiam ajudar a salvar o planeta, quando era ministra de Lula.
A deputada eleita fala com propriedade sobre o delicado diagnóstico a respeito da atuação da pasta na era Bolsonaro. “Na área ambiental, há uma catástrofe, uma verdadeira degradação no orçamento dos órgãos de gestão, como é o caso do Instituto Chico Mendes, e nos de fiscalização e monitoramento, a exemplo do Ibama e INPE.
Além disso, temos a desestruturação de equipes técnicas, que foram substituídas por policiais, os quais não entendem nada do assunto. Mais do que isso, temos de revogar atos de Bolsonaro, que em vez de submeter criminosos à lei mudou a lei para alinhá-la ao crime”, dispara.
Apesar das dificuldades, Marina pontua que a transição já trabalha com um plano de ação. Ela aponta, por exemplo, que o caminho para a recomposição do Orçamento pode ser pavimentado por um dispositivo, incluído na PEC de Transição, que permitirá ao novo governo o uso de recursos obtidos por meio de doações para a execução de projetos ambientais sem esbarrar no teto de gastos. As perspectivas são positivas porque a comunidade internacional já anunciou que retomará repasses ao Fundo Amazônia e Lula negocia a ampliação do número de contribuintes. “Quando estive na COP27, por exemplo, conversamos com instituições da alta filantropia global, apontando que eles também podem doar”, comenta.
A tendência é que Marina atue ao lado da ex-ministra Izabella Teixeira, que pode assumir a Autoridade Climática, órgão a ser criado no governo Lula. A efetiva entrada de Izabella no governo, porém, depende de uma queda de braço com… Marina. É que Teixeira tem dito nos bastidores que assumirá o cargo somente se ele ficar vinculado à Presidência da República, e não ao Ministério do Meio Ambiente. Os atritos não são novidade.
Embora sejam especialistas, as duas se estranham há anos. Marina, por exemplo, foi uma dura crítica de Belo Monte e do Código Florestal e acusou o governo Dilma Rousseff de ser conivente com o desmatamento, à época em que Teixeira era ministra. Velhos hábitos, dizem aliados das duas, demoram a morrer.
Apesar dos conflitos que tomam os bastidores, Lula concentra-se no potencial de todas as peças do quebra-cabeça e, segundo aliados, não deixará nenhuma das aliadas na chuva. Há, inclusive, outros nomes aventados para a Esplanada. A economista tucana Ana Carla Abrão consolidou-se como uma forte candidata ao Planejamento, para balancear o receio do mercado quanto a Fernando Haddad na Fazenda, e Nísia Trindade Lima, presidente da Fiocruz, ganhou projeção para a Saúde. Além disso, Lula cogita colocar a Caixa Econômica Federal e o Banco do Brasil em mãos femininas.
A primeira instituição funciona como operadora do Bolsa Família, que tem mães como principal público-alvo. A segunda é protagonista no Plano Safra, que oferece linhas de crédito para o agronegócio e pode aproximar as mulheres do campo do governo.
Janja e Gleisi
Por fora da corrida por cargos, há duas mulheres-chave que, apesar de não assumirem assentos do ministeriado, exercerão forte influência sobre os rumos do governo. Uma é Gleisi Hoffmann, que já chegou a responder aos questionamentos sobre a baixa representação feminina no grupo de transição. “Somos poucas aqui por enquanto, mas valentes. Sei que o pessoal tem cobrado participação mais efetiva das mulheres no processo político e a gente tem lutado muito para que isso aconteça. Eu tenho certeza que vamos conseguir aumentar a nossa presença nesse processo todo”, declarou na primeira reunião do conselho da transição.
Ela segue no comando do PT até novembro. A outra mulher fundamental para Lula é a própria Janja. Ela disse que pretende “ressignificar o conteúdo do que é ser uma primeira-dama”, aproximando a sociedade civil do do Planalto. A esposa de Lula, aliás, provoca até hoje burburinhos entre grão-petistas por se impor nas costuras políticas. Ela dá de ombros. Não ficará presa ao papel de primeira-dama “do lar”.
A voz ativa que lhe garantiu projeção na militância permanecerá. A dela e — aliás — a de todas as mulheres que comporão a gestão Lula. Como dito de forma recorrente por Marina Silva: “O meio político teve a sabedoria de se unir para ganhar em frente ampla e, agora, precisa do mesmo pensamento para governar em frente ampla”.
Pioneirismo e naufrágio
Dilma Rousseff foi a primeira presidente do País. Teve um governo conturbado e viu seu segundo mandato terminar em impeachment e recessão
Dilma Rousseff teve uma ascensão meteórica no PT ao chamar a atenção de Lula enquanto era secretária gaúcha de Energia. Filiou-se ao partido em 2001, às vésperas da candidatura vitoriosa do petista, e chegou ao comando do Ministério de Minas e Energia e da Casa Civil.
Foi escolhida como sua sucessora e disputou o Planalto em 2010. Tornou-se a primeira mulher a comandar o Brasil. O fato histórico logo deu lugar a crises. Apenas seis meses após a posse, em 2011, Antonio Palocci, então ministro da Casa Civil, caiu. Naquele ano, Dilma demitiu sete ministros, em um movimento batizado de “faxina ética”, e chegou a ver seus índices de aprovação subirem. A lua de mel durou pouco.
Em 2013, um movimento de protesto contra o aumento de tarifas em São Paulo gerou centenas de atos pelo País, que tinham uma pauta difusa ancorada no descontentamento com a classe política. Àquela época, o governo investia bilhões de reais na construção de estádios para a Copa do Mundo.
Um dos marcos da manifestação ocorreu em Brasília: centenas subiram no telhado do Congresso Nacional. Apesar disso, Dilma bateu Aécio Neves na eleição presidencial, um ano depois. A situação da petista, porém, se deteriorou com o avanço da Lava Jato, que desvendou o Petrolão e incriminou vários de seus aliados. A Nova Matriz Econômica, que quebrou contratos e aprofundou a intervenção estatal, fez a economia desabar e trouxe de volta a inflação.
No Congresso, Dilma perdeu sustentação e passou a atacar Eduardo Cunha, presidente da Câmara, que se tornou seu algoz ao dar início ao impeachment. As pedaladas fiscais selaram o destino da petista, que tentou sem sucesso voltar ao Senado em 2018. No novo governo Lula, ela é cotada para assumir a embaixada brasileira em Lisboa.