Reeleito há apenas seis meses, Emmanuel Macron tem enfrentando um cenário político adverso, equilibrando-se no comando da França por uma frágil composição de forças centristas no Parlamento e açodado ao mesmo tempo pela esquerda e pela extrema-direita de Marine Le Pen.

Mas o apoio tênue tem custado caro ao presidente. No domingo, 16, e na terça-feira, dois dias depois, milhares de manifestantes tomaram cidades francesas protestando contra a perda do poder aquisitivo frente à alta da energia e dos alimentos, exigindo aumentos salariais. O ambiente é agravado pelo seu plano de alterar de 62 para 65 anos a idade mínima de aposentadoria — o que pode ter sido, de fato, a mola-mestra que impulsionou os franceses a escancarar sua insatisfação.

“É o fim da era da abundância. Estamos vivendo uma grande transformação” Emmanuel Macron, presidente da França, em discurso de agosto (Crédito:Stephane Mahe )

Essa é a avaliação de Luciana Mello, especialista em Relações Internacionais e professora do Centro Universitário IBMR-RJ, que aponta a diferença: “Para o brasileiro, a aposentadoria é uma garantia de renda na velhice, mas para o francês é o período em que terá o direito de curtir a vida com tranquilidade”. A inflação incomoda, sim, mas o real motivo para tamanha reação popular pode estar na herança cultural e até inconsciente do trabalhador francês. “Existe um pacto não-escrito entre o cidadão, que trabalha e cumpre suas obrigações, e o Estado, que tem as dele e precisa manter princípios sagrados.” Para a professora, se resgatado o perfil da sociedade francesa, esse pacto está na alma dos franceses desde o Absolutismo.

Essa seria mesmo a explicação para o silêncio de Marine le Pen, que está com as garras recolhidas diante das reivindicações populares, ao contrário do líder da esquerda, Jean-Luc Mélenchon, que esteve à frente das manifestações em Paris. Como populista de direita, Le Pen teria de defender a manutenção dos 62 anos. Mas sabe que, na prática, “a conta não fecha” e também terá de diminuir gastos e cortar benefícios se chegar ao poder. “É melhor não correr o risco de ser levada à guilhotina… Ou ser ‘cancelada’, na versão contemporânea”, ironiza Luciana. “O francês não perdoa esse comportamento de vira-casaca. Ele defende a coerência.”

O sonho acabou

Macron decretou realisticamente que “a França está no fim da era da abundância” e passa ele mesmo pelo que está sendo chamado de “hemorragia de autoridade”. Sem apoio da oposição e, portanto, sem maioria no Parlamento (seriam necessários 289 votos na Assembleia Nacional), não consegue aprovar o orçamento — mais um problema em sua pilha de pendências acumuladas. Como a própria primeira-ministra Elisabeth Borne antecipou, o governo poderá se valer para isso de um artigo da Constituição francesa, chamado de “bomba nuclear legislativa” por permitir imposição de leis pelo executivo sem necessidade de passar no Parlamento.

A ameaça, no entanto, pode virar um tiro no pé: sem o “voto de confiança” da maioria absoluta e sob uma “moção de censura” (se apresentada em 24 horas ao menos por 58 deputados — ou 10% do total), a primeira-ministra e o presidente teriam de renunciar.

O presidente também tem sofrido com contingências alheias às suas ações. No pós-pandemia, quando as economias esperavam pela retomada, a guerra na Ucrânia se tornou o fardo mais pesado dos países europeus como a França. A escassez do gás russo, com as sanções impostas, aumentou seu preço e, por tabela, fez explodir o custo da energia para cadeias produtivas no continente e também para as famílias, que usam o combustível para aquecimento de casas, principalmente agora que começa o inverno no hemisfério norte, com mais nevascas financeiras à vista.

A França — segunda economia do bloco econômico — depende menos de Vladimir Putin, o presidente russo, porque conta com dezenas de usinas nucleares. E ainda pode se beneficiar de um teto para o preço da energia proposto pela União Europeia porque o governo francês tem grande participação na EDF, empresa desse setor. Esse “subsídio”, no entanto, contribui para o aumento da dívida pública, que pode se tornar insustentável porque alimenta a inflação (em setembro, esteve em 5,6%; baixa, se comparada aos 10,1% que destroçam o Reino Unido e ao recorde de 10% da Alemanha, a economia mais forte da Europa).
Enquanto as ruas protestam contra o governo, Macron ainda tem de manter um olho em Jean-Luc Mélenchon, líder da esquerda radical que aproveita a brecha para comandar as reivindicações populares, e outro em Le Pen, que voltou às sombras — por enquanto.

Semana de fogo

SALÁRIOS E LUCROS Manifestações começaram por usinas e refinarias, no fim de setembro (Crédito:Estelle Ruiz)

O movimento iniciado no fim de setembro, por operários de usinas nucleares e refinarias da Esso-ExxonMobil e da TotalEnergies, exigia aumento salarial para recuperação do poder de compra diante da inflação.

Quando a greve parecia controlada, as reivindicações se diversificaram e extrapolaram para outros setores. O ministro Bruno Le Maire, da Economia, gritou que “acabaram as negociações”, mas as paralisações se estenderam aos setores ferroviário e rodoviário, à saúde e à educação.

Numa semana de fogo para Macron, 300 mil pessoas saíram às ruas na terça-feira, 18, em um dia de greve nacional contra a inflação e a mudança nas aposentadorias. O temor é que Macron tenha de encarar longos períodos de protestos, como no primeiro mandato, quando os “coletes amarelos” tomaram a França por 18 meses, entre novembro de 2018 e março de 2019.