É difícil apontar qual área da administração federal foi mais destruída ao longo dos últimos quatro anos. Meio ambiente, educação, saúde – a lista é grande. É indubitável, porém, que a cultura foi muito ferida. Afinal, não há tema mais oposto à ignorância que a arte: o governo trata os profissionais do setor não apenas como adversários políticos, mas como inimigos. O alívio com o resultado da eleição, portanto, é natural. Embora as gestões de Lula e Dilma não tenham sido perfeitas, não há como compará-las à arruaça institucional de hoje. Essa situação existe desde a posse de Bolsonaro, em 2019: a Cultura, que tinha status de ministério (MinC) desde 1985, foi rebaixada duas vezes. Primeiro, virou uma secretaria vinculada ao Ministério da Cidadania (Secult). No final do primeiro ano, sem nenhuma justificativa coerente, foi transferida para o Ministério do Turismo.

CONFRONTO O diretor de cinema Caio Cobra acredita que Bolsonaro criou um cenário de animosidade com o setor cultural: “ele passa para
a população a imagem de que não trabalhamos e que vivemos às custas de dinheiro público” (Crédito:Divulgação)

O discurso agressivo do presidente contra a cultura, associando artistas à “mamata” e os acusando de “tirar dinheiro da educação e saúde”, criou uma imagem negativa dos profissionais do setor. Essa acusação nunca foi verdadeira. No caso do cinema, por exemplo, a maior parte da verba que integra o Fundo Setorial do Audiovisual vem do Condecine, imposto pago pela rede de exibidores à Ancine (Agência Nacional de Cinema). O diretor Caio Cobra, de Intervenção e Virando a Mesa, acredita que o governo fez de tudo para acabar com a Ancine, mas, como não teve sucesso, criou entraves burocráticos para arruinar a produção nacional. “Meu desejo no momento é simples. Torço apenas pela volta à normalidade, já seria um bom começo”, diz o cineasta. Ele ressalta que é preciso interromper a animosidade que Bolsonaro criou com o mercado audiovisual. “Ele passa para a população a imagem de que não trabalhamos e que vivemos às custas de dinheiro público. São milhares de pessoas em todo o País que precisam ser respeitadas.”

Investimento no setor cultural não é favor: estudo da FGV revela que para cada real investido existe retorno de R$ 1,67

Investir em cultura não é um favor que os governantes fazem aos artistas: o setor dá lucro. Segundo estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV), realizado no estado de São Paulo, cada R$ 1 investido nesse âmbito gerou um retorno de R$ 1,67. O levantamento mapeou o impacto de três programas de fomento: a Lei Aldir Blanc, o ProAC e o Juntos pela Cultura. Em 2020, movimentaram R$ 688,8 milhões, criando ou mantendo mais de nove mil empregos e gerando R$ 110,8 milhões em tributos. Em 2021 e 2022, o Congresso aprovou três medidas que beneficiariam artistas prejudicados pela pandemia, por meio da injeção de recursos em projetos culturais: a Lei Paulo Gustavo (R$ 3,8 bilhões), a Lei Aldir Blanc 2 (R$ 3 bilhões), ambas inspiradas em nomes populares que morreram vítimas da Covid-19, e a lei do Perse (Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos, com R$ 2,5 bilhões). O presidente Jair Bolsonaro simplesmente vetou as medidas. O Congresso derrubou o veto, mas o governo conseguiu adiar os repasses por meio de Medida Provisória.

RENASCIMENTO A produtora Andrea Alves acredita que o sistema criado por gestões anteriores foi destruído: “passamos quatro anos vivendo uma rotina de medo, em que pessoas tinham suas redes sociais vigiadas” (Crédito:Divulgação)

A Lei Rouanet, principal norma de incentivo, é o maior alvo dos ataques. Mudanças recentes nas regras reduziram o valor máximo permitido para captação de recursos de R$ 60 milhões para R$ 1 milhão. A quantia a ser captada em cada empresa também caiu, de R$ 60 milhões para R$ 6 milhões. Em relação aos cachês, o teto para o pagamento de um artista solo passou de R$ 45 mil para R$ 3 mil. O audiovisual sofreu um massacre: o montante captado por um programa de TV fixou-se em R$ 50 mil por episódio. Mesmo tratando-se de uma superprodução mundial, a comparação é pertinente: um episódio da série The Crown, da Netflix, custa em média R$ 66 milhões.

Diante desse cenário de terra arrasada, a perspectiva é grande com o terceiro mandato do presidente Lula, ainda mais após o seu discurso de vitória. “Quem tem medo de cultura não gosta do povo, da liberdade, da democracia. Nenhuma nação do mundo será uma verdadeira nação se não tiver liberdade cultural. O País vai recuperar sua cultura”, afirmou.

Em seus mandatos anteriores, Lula teve ministros de perfis diferentes. Gilberto Gil, músico reconhecido em todo o mundo, ocupou o cargo entre 2003 e 2008; Juca Ferreira, um técnico respeitado no meio, o sucedeu, e voltou depois à pasta no governo de Dilma Rousseff. O nome de Ferreira volta a ser cogitado, assim como o de Manoel Rangel, ex-presidente da Ancine. Se optar por um artista, os mais cotados são Daniela Mercury e Chico César. A aprovação do escolhido deve passar por Rosângela Silva, a Janja, esposa de Lula e futura primeira-dama do País. Durante a campanha, ela aproximou-se artistas populares como a cantora Anitta e o ator Paulo Vieira, que apoiaram o petista, e foi responsável pela seleção dos nomes que gravaram o jingle Sem Medo de Ser Feliz, que contou com Maria Rita e Martinho da Vila, entre outros.

O desprezo de Bolsonaro pela área pode ser demonstrado na irrelevância dos nomes indicados para a Secretaria Especial de Cultura. O primeiro, o jornalista Henrique Pires, pediu demissão após ser proibido de lançar um edital com conteúdo voltado ao público LGBTQIA+. Veio então o economista Ricardo Braga, que não ficou nem dois meses. Foi substituído por Roberto Alvim, demitido após protagonizar um vídeo inspirado no nazista Joseph Goebbels, ministro da propaganda de Adolf Hitler. A atriz Regina Duarte também durou pouco, apenas dois meses, saindo após apresentar um comportamento de instabilidade emocional. O mais longevo secretário, Mário Frias, ex-ator de Malhação, mostrou-se o mais alinhado com o presidente: ia armado ao trabalho e, em vez de apresentar projetos, preferia brigar com artistas pelas redes sociais e postar fotos em clubes de tiro. Hoje a secretaria tem à frente Hélio Ferraz, um técnico de perfil mais discreto.
Jardiel Carvalho

CINEMATECA O incêndio que destruiu parte do acervo é uma prova do descaso do governo federal com o setor. Segundo a diretora-executiva Dora Mourão (acima), as mudanças que ocorrerão serão bem-vindas (Crédito:Danilo Verpa)

“Saímos de uma situação de desespero para o estado de realista esperançoso, como dizia Ariano Suassuna” Andrea Alves, produtora cultural

Cinemateca

A Cinemateca Brasileira, maior acervo audiovisual da América Latina, com 245 mil rolos de filmes, é um exemplo do descaso do governo federal. Depois de sucessivos cortes no orçamento, sofreu um incêndio em 2021 que levou à perda de quatro toneladas de história do cinema nacional. O local foi reaberto somente em janeiro de 2022, depois que a gestão viu-se repassada à Sociedade Amigos da Cinemateca. Dora Mourão, diretora-executiva da Cinemateca, acredita que as mudanças que vêm pela frente serão bem-vindas. “O desafio é grande. A cultura sempre enfrentou altos e baixos, nunca foi possível desenvolver uma política que tivesse continuidade. Tenho esperança de que o aprendizado que tivemos na história recente sirva de ponto de partida para implantar uma política cultural consequente.”

Divulgação

A produtora cultural Andrea Alves, responsável pelos musicais Elza e a A Hora da Estrela, afirma que nunca havia passado por um período tão ruim em 30 anos de carreira. “O sistema que havia sido criado nas gestões anteriores foi destruído. Passamos quatro anos vivendo uma rotina de medo, em que pessoas tinham suas redes sociais vigiadas. Se o projeto fosse considerado comunista ou com uma ideologia diferente da pregada pelo governo, não ia para a frente. Foi uma perseguição, mesmo.” A produtora afirma ainda que houve demissão de servidores, o que criou um caos generalizado. “Um simples questionamento, algo que durava cerca de cinco dias para ser respondido, passou a levar seis meses. Entre 2019 e 2020, mais de R$ 700 milhões em recursos que foram captados pela lei nem chegaram aos produtores.” A produtora define o sentimento que rege o setor desde a vitória de Lula: “Saímos de uma situação de desespero para o estado de realista esperançoso, como dizia Ariano Suassuna.”

APOSTAS Daniela Mercury e Juca Ferreira: cotados para a pasta da Cultura, que voltará a ter status de ministério após ser rebaixada por Bolsonaro à Secretaria Especial (Crédito:Leo Lemos)