25/11/2022 - 9:30
Carlinhos Brown é uma usina musical onde cabem todos os estilos. Para comemorar seus 60 anos, está lançando três álbuns diferentes – de rock, de música instrumental e de carnaval. Quem estranha essa diversidade não conhece Antônio Carlos Santos de Freitas: nascido na comunidade do Candeal Pequeno de Brotas, em Salvador – o sobrenome é homenagem a James Brown, o rei do suíngue –, esse inquieto artista participou da criação do samba-reggae e da Axé-music. À frente da Timbalada, projeto que combina ação social e percussão, formou milhares de jovens músicos. É um dos mais bem sucedidos compositores brasileiros, com centenas de sucessos cantados por ele ou por algum de seus parceiros, de Marisa Monte ao Sepultura. Foi indicado ao Oscar pela trilha sonora da animação Rio e ganhou duas vezes o Grammy Latino. Ainda arranja tempo para fazer sucesso na TV, como jurado do programa The Voice Kids. Em 2023, será pioneiro mais uma vez ao compor a trilha de Orfeu Negro, primeiro musical brasileiro na Broadway.
Sua comemoração de 60 anos inclui o lançamento de três discos bem diferentes: de rock, música instrumental e carnaval. Esses estilos são um resumo da sua carreira?
São os três estilos que eu percorro, de um para o outro, em todos os momentos. Mas também recorro ao jazz, pelo experimentalismo, e ao Axé, que está entre as invenções da minha carreira. A banda que deu origem ao movimento era liderada por Luiz Caldas. Quando lançamos Nega do Cabelo Duro (que não Gosta de Pentear) era a premonição de que a música mundial seria híbrida, como estamos vendo acontecer agora.
Como percussionista, você aceitou bem a bateria eletrônica?
Começamos misturando baterias eletrônicas e percussões, era tudo muito novo. A verdade é que o melhor da música é o experimentalismo. Se você quer ser músico, tem de acordar todo dia para estudar e rever as respostas, que estão na música. Já toquei com grandes nomes do jazz. James Brown me chamava de “Brazilian Son”, eu era o seu filho brasileiro.
Quais são suas influências para conseguir transitar em tantos estilos diferentes?
Dos anos 1970 para cá, recebemos muita informação. Ouvir um rádio potente, que nunca foi excludente nem monotemático, foi importante na minha educação. Ouvi as guitarras do Tropicalismo, Caetano, Gil, Gal, Bethânia, Rita Lee. São meus grandes professores de referência. Como percussionista, tive a oportunidade de tocar todos os estilos e guardei o melhor de cada um. As influências surgem espontaneamente, da curiosidade.
O que você ouve em casa? Há algum elemento que amarra todos esses sons?
Tenho um bom ouvido para música, sou um esteta que busca o melhor de cada som. O que todos esses estilos têm em comum é a origem: são todos africanos. Tudo nasce na África e depois se mistura com o resto do mundo.
Sua ligação com o rock é antiga?
O Mar Revolto foi minha primeira banda, ainda nos anos 1970, tinha muito suíngue. Parece que os estilos estão separados, mas são as prateleiras que nos conduzem a isso. Não visto o terno elegante do jazz, mas faço jazz. Não tenho atitude roqueira, mas vivo o rock. Não sei jogar capoeira, mas sei tudo sobre o tema porque me interesso.
Como tem sido a experiência como jurado do The Voice e The Voice Kids? É possível descobrir artistas nesse tipo de formato para TV ?
Descobrir jovens artistas faz parte da minha vivência. A TV só impulsionou isso e deixou tudo mais claro. Uma garota me disse: ‘você não é um músico, você é um movimento sozinho’. Isso foi uma coisa que herdei do mestre Pintado. Vi que poderia ajudar socialmente fazendo escolas de música. Fiz muitas ao longo dos últimos 35 anos. Sob minhas mãos tenho mais de quinze mil músicos formados. Isso é um impulso que tenho no dia a dia: quando encontro um menino curioso, que quer tocar percussão, sigo minha missão de tamboreiro.
Qual é a sua função como mentor? Como se tornar uma fonte de inspiração para essas crianças?
Tenho muita responsabilidade de encontrar uma frase, algo que ilumine meus alunos. A primeira aula é sempre um incentivo. Hoje, tenho muitos alunos formados, mas para isso tive de entender a oralidade. Sei um bocado de histórias porque converso muito, sobretudo com gente idosa, que é gente que tem o que dizer. Como eu sou péssimo leitor, eu escuto mais. Busco incentivar as crianças porque minha infância teve essa ausência, que só fui encontrar na adolescência. Raramente incentivam as crianças, costumam intimidá-las.
A música é uma missão na sua vida?
Se você está pronto para fazer música, tem de estar pronto para servir. Música é serviço, não é um regozijo pessoal. Todo artista tem uma história igual, sempre sonha em dar mais atenção aos filhos. Mas escolheram uma profissão que tem que cuidar do outro, mais até do que dos filhos. A música é assim, é medicinal mesmo, é para curar.
Temos visto muitos casos de racismo no Brasil. O que é preciso fazer para reverter essa situação?
Nasci abaixo da linha da pobreza. É claro que exclusão é racismo, falta de escola também, falta de acesso à alimentação. O racismo não pode ser visto apenas ligado à cultura negra, ele é dedicado a todas as etnias. Os indígenas sofrem racismo. Mas tem muita gente que ganha dinheiro e deixa de ser preto.
Você ainda sofre preconceito?
Não posso dizer que nunca sofri racismo. Sofri muito, até hoje sofro. Mas o que eu faço? Trabalho para combater pela educação e a conversa. Mas eu não amplifico isso. Em certas situações, amplificar só vai dar margem ao outro para ele ver que também pode agir. Então eu busco neutralizar, deixo que a vergonha fique com o racista. Isso não significa omissão, mas fazer com que o outro aprenda que somos todos iguais.
Lula acaba de ser eleito para assumir a Presidência em 2023. Como vê o País nos próximos anos? Com esperança?
A minha esperança é que possamos nos unir enquanto brasileiros. É um país só e vai haver momentos de dificuldade. Mas se nós, enquanto cidadãos, não olharmos o Brasil, ninguém vai. O governo Lula vai passar e virão outros presidentes. Temos que estar prontos enquanto brasileiros. Os líderes que escolhermos devem estar sob a nossa responsabilidade e tutoria. A internet acirrou as reclamações, mas provocou menos conhecimento político. Não adianta se queixar e não agir. Quando questionei as escolas e os postos de saúde, fui lá e fiz escolas e postos de saúde na minha comunidade.
O projeto Earth Mother Water tem como foco a defesa do meio ambiente. Essa questão também o preocupa hoje?
Não só hoje, mas sempre. Venho do candomblé e um dos Orixás que guia a natureza chama Ossaim. Canto sobre isso ao longo da minha carreira, não fiz Água Mineral para ser uma música de carnaval, mas para conscientizar. Temos de ter responsabilidade. Precisamos participar da política, não apenas ficar esperando o presidente resolver. Foi Dona Ruth Cardoso quem me ensinou a falar sobre sustentabilidade. Ela e, mais tarde, Viviane Senna, foram grandes líderes sociais do Brasil, que entregaram ao Brasil uma mudança.
Você homenageou as mulheres na canção Tá na Mulher. Como vê a questão feminina no Brasil?
Elas sempre tiveram o espaço delas, eles é que eram invadidos pela fragilidade do verdadeiro sexo frágil. Minha mãe é a minha grande inspiração, porque ela me trouxe ao mundo quando ela ainda nem tinha completado 15 anos. Fui criado na primeira cooperativa de lavadeiras da Bahia. Eram mulheres de vanguarda, das suas vozes saíam as músicas mais bonitas.
E a presença masculina, como era?
Os finais de semana eram chatos, eu não gostava porque era quando os maridos voltavam. Muitos eram violentos pela embriaguez. Enfrentei vários homens na comunidade quando era criança, com pedaço de corda. Vi muita violência doméstica, e vejo que isso mudou pouco, infelizmente. Mas as mulheres eram muito unidas, na falta da escola eram elas quem ensinavam o “ABC” e quem cuidavam da comida.
Dá para perceber que há muitas mulheres na sua equipe.
O amor está na mulher, o Xangô está na mulher, a justiça está na mulher. Sempre trabalhei com mulheres, desde o início da carreira. Sempre fui liderado por elas, me acostumei a trabalhar com empresárias à frente. Elas me trouxeram até aqui com ideias incríveis e fazem parte da força do que sou.
A cultura foi abandonada nos últimos quatro anos. Como vê as perspectivas para o setor no futuro?
Vejo com bons olhos porque o governo Lula deu provas de que pensa na cultura. Já tivemos momentos mais felizes. Sempre vejo a cultura como a verdadeira política. A estética é política. Uma parte da sociedade imagina que a arte é preguiça ou que somos preguiçosos. Enxergam a Lei Rouanet como se o governo estivesse nos dando dinheiro, mas não é nada disso.
Acredita que a teremos tempos melhores pela frente?
Sim, estamos vivendo novos momentos. O governo Lula pode trazer mais investimento social e cultural. Torço para que isso não se modifique, seja com a direita ou a esquerda no poder. A democracia está preparada para receber qualquer onda ou qualquer encaminhamento político, quem tem que ser forte são os cidadãos. Somos nós que temos que buscar o que queremos.
Como vê a polarização no País?
Não devemos desrespeitar os pensamentos contrários. Todos os lados têm de ser respeitados no seu pensar. Ninguém está sempre certo, mas estará com a razão quem estiver do lado da paz e do conforto de todos. Temos de lutar por um Brasil para todos. Que os erros passados não se repitam. Houve uma condução que não agradou a todos, e aí está o resultado da maioria, que deve ser respeitado. Mas a maioria também tem de trabalhar com aqueles de quem discordam. Temos que encontrar uma concordância, porque, no fundo, todos querem o melhor para o Brasil. Eu vou atuar sempre para que o Brasil dê certo.