Em 2019, 1,27 milhão de pessoas morreram devido a infecções bacterianas resistentes a antibióticos. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), esse foi o número de vítimas fatais das chamadas superbactérias, micróbios que sobrevivem a diversos medicamentos. Os dados estão associados ao uso excessivo e incorreto dos fármacos disponíveis para o tratamento de infecções. Essa taxa de mortalidade pode aumentar para 10 milhões de pessoas por ano até 2050, caso os governantes não se atentem à poluição do meio ambiente. Essa é a advertência dada pela Organização das Nações Unidas no recém-publicado relatório “Preparando-se para as superbactérias: fortalecendo a ação ambiental na resposta à resistência antimicrobiana pela abordagem de Saúde Única”, apresentado na 6ª reunião do Grupo de Lideranças Globais em Resistência Antimicrobiana, em Barbados.

De acordo com o documento, reduzir os poluentes criados pelos setores farmacêutico, agrícola e de saúde é essencial para diminuir o surgimento, a transmissão e a disseminação das superbactérias e dos casos de resistência antimicrobiana, conhecidas como RAM. Para a entidade, a tripla crise planetária – mudanças climáticas, prejuízo na biodiversidade e poluição – acarreta “temperaturas mais altas, padrões climáticos extremos e modificações no uso da terra que alteram sua diversidade microbiana, bem como a poluição biológica e química”. Para Flávia Cohen, da Comissão de Controle de Infecção Hospitalar do Hospital Quinta D’or, a população deve ser orientada a cuidar do meio ambiente: “Fica o alerta para quem acredita que o aquecimento global é uma mentira”, diz ela. “Precisamos dar atenção à poluição do ar e do solo, as principais causas da resistência dessas superbactérias aos medicamentos”.

MEIO AMBIENTE Poluição propicia o surgimento de superbactérias nos rios: micróbios que se desenvolvem no calor são beneficiados pelo aquecimento global (Crédito:WALTER ASTRADA)

A evolução dos patógenos assombra. A empresária Cristina Nunes, de 40 anos, levou um susto quando precisou ser operada às pressas por causa de uma infecção por bactéria. Em 2016, ela sofreu um acidente doméstico e cortou a palma da mão esquerda com um pedaço de vidro. Com cirurgia e fisioterapia, pensou que a lesão estava superada. Em novembro de 2022, notou uma pequena ferida com secreção na região, mas a tratou com pomadas cicatrizantes. Há uma semana, acordou com o dedo inchado e foi ao hospital, onde descobriu que era vítima da ação de uma bactéria de pele. “O médico disse que era um germe oportunista, que entra, faz um estrago, a pessoa morre e nem sabe o que foi. Me apavorei”, disse ela. Após uma segunda cirurgia e quatro dias de internação, ela fará uso de antibiótico por um mês. Esse caso é uma amostra do desenvolvimento que essas espécies alcançaram. Se fosse uma superbactéria, Cristina poderia estar na estatística preocupante da OMS.

“A poluição do ar, do solo e dos rios prejudica o direito humano a um ambiente limpo e saudável” Inger Andersen, Diretora-executiva do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente

A RAM ocorre quando micróbios como bactérias, vírus, parasitas e fungos resistem aos tratamentos antimicrobianos usados na saúde e na produção agrícola e animal. É um ciclo vicioso de anos e já conhecidos pelos médicos. “O uso indiscriminado de antibióticos na veterinária, no ser humano e na pecuária é responsável por essa mutação”, afirma o infectologista Marcelo Neubauer. “Bactérias gostam de calor. Se há um aquecimento do planeta, há mais calor e umidade. Existe uma propensão que lhes facilita o desenvolvimento”. Parte das superbactérias ainda estão restritas ao ambiente hospitalar, mais especificamente nas unidades de terapia intensiva. “A taxa de mortalidade é maior. Temos menos opções de antibióticos para usar e, os que funcionam, são bem mais tóxicos”, diz a infectologista Clarissa Cerqueira. “Existem bactérias naturalmente resistentes a vários antibióticos, mas algumas reagem até contra medicamentos que acabaram de surgir.”

A atual interligação das superbactérias com o ecossistema assusta. Em 2016, espécimes desse grupo foram encontradas na Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro. A ONU reforça que é preciso se atentar às fontes de poluição e saneamento básico, e promover uma conscientização maior a respeito da higiene. “Em São Paulo, os rios Tietê e Pinheiros são uma temeridade, com águas extremamente contaminadas. Esses rios permanecem assim por quilômetros. Em seu percurso há animais, plantações e cidades que sofrem com aquilo”, diz Neubauer. “O esgoto é despejado nos rios. Isso significa que possui dejetos humanos contendo bactérias do nosso intestino. Esse é um dos alertas principais: precisamos melhorar nossa relação com o meio ambiente”, conclui.