As singulares coleções da Semana de Alta-Costura de Paris, realizada há alguns dias na França, abriram uma polêmica. A Schiaparelli exibiu modelos com ornamentos que reproduzem, de forma incrivelmente hiper-realista, animais selvagens. Fenômeno nas mídias sociais, Kylie Jenner surgiu na primeira fila em um vestido preto com uma gigantesca réplica de cabeça de leão. Na passarela, a mesma peça foi apresentada por Irina Shayk. Naomi Campbell vestiu um lobo e Shalom Harlow um leopardo. A internet se agitou contra a teatralidade surrealista da centenária grife francesa.

Michel Euler

Questionamentos e opiniões sobre o limite da mesclagem entre moda, fantasia e arte viralizaram na mesma velocidade que as fotos. É preciso entender um ponto: a Semana de Alta-Costura traz desfiles conceituais, criações que não são para serem usadas nas ruas, pois não têm contexto comercial. “Não estamos vendo roupas e, sim, a intenção das marcas e estilistas. É necessário olhar como se fossem obras de arte, sem julgamento rígido”, explica Camila Cavalcante, stylist pela Escola de Moda de Lisboa. “Diante de uma tela, tentamos entender a mensagem do artista ou não?”, questiona.

A etiqueta francesa tem o surrealismo em seu DNA. Por isso, para este ano, seguiu à risca seu histórico vanguardista com criações inspiradas no livro A Divina Comédia, de Dante Alighieri. Com o nome de Inferno Couture, Schiaparelli trouxe leão, lobo e leopardo como as feras representando luxúria, orgulho e avareza na porta do inferno de Dante. Em tempos de redes sociais, essa explicação chegou tarde demais. Fotos e vídeos foram deturpados pelo grande público, que enxergou crueldade animal, uso de peles e caça. Os criticados adereços foram feitos artesanalmente, com espuma esculpida à mão, resina, lã e pele sintética de seda.

A discussão chegou até a Peta, organização não governamental de proteção aos animais, que saiu em defesa de que “roupas podem ser uma declaração contra a caça”. Ingrid NewKirk, presidente da entidade, repudiou quem pensou em taxidermia. “Essas cabeças tridimensionais fabulosamente inovadoras mostram que, onde há vontade, há um caminho. Encorajamos todos a aderirem a designs 100% livres de crueldade, que mostrem a engenhosidade humana e evitem o sofrimento dos animais”, declarou.

O universo fashion se divide. A consultora de moda Danielle Ferraz, que já visitou o ateliê da marca em Paris, ressalta que apesar de polêmica, Schiaparelli tem em seu legado a delicadeza na “busca por embelezar mulheres”, o que não aconteceu neste ano. “A forma que o surrealismo foi trabalhado passa a imagem da cabeça como troféu. Antigamente o luxo era muito ligado a isso: ter pele verdadeira ou uma cabeça de animal na sala dos nobres”, observa. Usar a imagem de um bicho, ainda que de pelúcia e como enfeite, derrapou na elegância. “Poderia ser de outro jeito e respeitando o movimento de vanguarda. Talvez, com metal.”

“Que cabeças de animais não sejam jamais usadas de enfeite. Nem de brincadeira. Por uma moda e um mundo mais elegantes” Danielle Ferraz, consultora de moda

Apesar de criticada, a casa viralizou e quem não a conhecia passou a saber que ela existe. Mesmo assim, especialistas rogam pelo consciente. “Creio que cabe mostrar a parte artística. Há espaço para isso, desde que não bata em problemas que já enfrentamos. Moda influencia no comportamento, não podemos esquecer isso”, ressalta Danielle.

ESPETÁCULO Viktor&Rolf: marca holandesa apresentou surrealismo com vestidos conceituais e em todas as direções (Crédito:Zuma Press/FRANCOIS DURAND)

Moda desafiada

Também em Paris, outra grife repercutiu com algo igualmente fora do comum. A Viktor&Rolf apresentou um espetáculo de surrealismo com vestidos, literalmente, de ponta-cabeça. Com humor, os estilistas brincaram com a costura, e a mensagem da arte foi simples. “Criamos algo que de alguma forma é impossível, que desafia a gravidade, mas está aí”, explicou Rolf Snoeren. Se a questão é chamar a atenção, esse é um exemplo de como isso pode ser feito sem atingir temas sensíveis. Principalmente hoje, em que o julgamento online é instantâneo. “Acessibilizar é importante, a moda e as formas de consumo e circulação da informação mudaram nos últimos tempos. E isso também precisa ser avaliado pelos criadores”, aponta Heloísa de Sá Nobriga, coordenadora do curso de Design de Moda da Estácio.

Aos que têm curiosidade ou apreciam tendências, a profissional sugere uma reflexão: “Quando olhamos para um desfile e pensamos ‘quem vai usar isso?’, estamos muito longe do que é a moda. O que vai para as ruas passa por um longo processo desde a conceituação até a transformação dos principais elementos em peças comerciais”.