03/02/2023 - 9:30
As singulares coleções da Semana de Alta-Costura de Paris, realizada há alguns dias na França, abriram uma polêmica. A Schiaparelli exibiu modelos com ornamentos que reproduzem, de forma incrivelmente hiper-realista, animais selvagens. Fenômeno nas mídias sociais, Kylie Jenner surgiu na primeira fila em um vestido preto com uma gigantesca réplica de cabeça de leão. Na passarela, a mesma peça foi apresentada por Irina Shayk. Naomi Campbell vestiu um lobo e Shalom Harlow um leopardo. A internet se agitou contra a teatralidade surrealista da centenária grife francesa.

Questionamentos e opiniões sobre o limite da mesclagem entre moda, fantasia e arte viralizaram na mesma velocidade que as fotos. É preciso entender um ponto: a Semana de Alta-Costura traz desfiles conceituais, criações que não são para serem usadas nas ruas, pois não têm contexto comercial. “Não estamos vendo roupas e, sim, a intenção das marcas e estilistas. É necessário olhar como se fossem obras de arte, sem julgamento rígido”, explica Camila Cavalcante, stylist pela Escola de Moda de Lisboa. “Diante de uma tela, tentamos entender a mensagem do artista ou não?”, questiona.
A etiqueta francesa tem o surrealismo em seu DNA. Por isso, para este ano, seguiu à risca seu histórico vanguardista com criações inspiradas no livro A Divina Comédia, de Dante Alighieri. Com o nome de Inferno Couture, Schiaparelli trouxe leão, lobo e leopardo como as feras representando luxúria, orgulho e avareza na porta do inferno de Dante. Em tempos de redes sociais, essa explicação chegou tarde demais. Fotos e vídeos foram deturpados pelo grande público, que enxergou crueldade animal, uso de peles e caça. Os criticados adereços foram feitos artesanalmente, com espuma esculpida à mão, resina, lã e pele sintética de seda.
A discussão chegou até a Peta, organização não governamental de proteção aos animais, que saiu em defesa de que “roupas podem ser uma declaração contra a caça”. Ingrid NewKirk, presidente da entidade, repudiou quem pensou em taxidermia. “Essas cabeças tridimensionais fabulosamente inovadoras mostram que, onde há vontade, há um caminho. Encorajamos todos a aderirem a designs 100% livres de crueldade, que mostrem a engenhosidade humana e evitem o sofrimento dos animais”, declarou.
O universo fashion se divide. A consultora de moda Danielle Ferraz, que já visitou o ateliê da marca em Paris, ressalta que apesar de polêmica, Schiaparelli tem em seu legado a delicadeza na “busca por embelezar mulheres”, o que não aconteceu neste ano. “A forma que o surrealismo foi trabalhado passa a imagem da cabeça como troféu. Antigamente o luxo era muito ligado a isso: ter pele verdadeira ou uma cabeça de animal na sala dos nobres”, observa. Usar a imagem de um bicho, ainda que de pelúcia e como enfeite, derrapou na elegância. “Poderia ser de outro jeito e respeitando o movimento de vanguarda. Talvez, com metal.”
“Que cabeças de animais não sejam jamais usadas de enfeite. Nem de brincadeira. Por uma moda e um mundo mais elegantes” Danielle Ferraz, consultora de moda
Apesar de criticada, a casa viralizou e quem não a conhecia passou a saber que ela existe. Mesmo assim, especialistas rogam pelo consciente. “Creio que cabe mostrar a parte artística. Há espaço para isso, desde que não bata em problemas que já enfrentamos. Moda influencia no comportamento, não podemos esquecer isso”, ressalta Danielle.

Moda desafiada
Também em Paris, outra grife repercutiu com algo igualmente fora do comum. A Viktor&Rolf apresentou um espetáculo de surrealismo com vestidos, literalmente, de ponta-cabeça. Com humor, os estilistas brincaram com a costura, e a mensagem da arte foi simples. “Criamos algo que de alguma forma é impossível, que desafia a gravidade, mas está aí”, explicou Rolf Snoeren. Se a questão é chamar a atenção, esse é um exemplo de como isso pode ser feito sem atingir temas sensíveis. Principalmente hoje, em que o julgamento online é instantâneo. “Acessibilizar é importante, a moda e as formas de consumo e circulação da informação mudaram nos últimos tempos. E isso também precisa ser avaliado pelos criadores”, aponta Heloísa de Sá Nobriga, coordenadora do curso de Design de Moda da Estácio.
Aos que têm curiosidade ou apreciam tendências, a profissional sugere uma reflexão: “Quando olhamos para um desfile e pensamos ‘quem vai usar isso?’, estamos muito longe do que é a moda. O que vai para as ruas passa por um longo processo desde a conceituação até a transformação dos principais elementos em peças comerciais”.