Apesar de ter encerrado suas duas primeiras gestões com alta popularidade, Lula foi eleito no ano passado com a margem mais apertada da redemocratização. Sabia que a “lua de mel” seria curta, e que precisaria ganhar rapidamente a confiança de todo o País, inclusive da metade que votou em Jair Bolsonaro. Mais de 40 dias após a posse, no entanto, o presidente tem enfrentado uma sucessão de crises e parece ainda lutar para colocar o governo nos trilhos. A agressividade tem aumentado, afastando qualquer discurso de pacificação.

O ponto mais vulnerável continua sendo a economia. A guerra escancarada contra o presidente do Banco Central na última segunda-feira, durante a posse de Aloizio Mercadante no BNDES, deixou patente a fragilidade do discurso oficial e a dificuldade em ganhar a confiança dos agentes econômicos – ao contrário, o mau humor aumentou. O presidente atacou a decisão do Comitê de Política Monetária (Copom) de manter a taxa Selic em 13,75% ao ano. “É só ver a carta do Copom para a gente saber que é uma vergonha esse aumento de juros e a explicação que eles deram para a sociedade brasileira”, declarou. Seu alvo era Roberto Campos Neto, presidente da instituição, a quem chamou de “esse cidadão”.

A impressão é que o presidente já busca um bode expiatório para os resultados na economia que deverão ser fracos no primeiro ano de mandato. A previsão de crescimento do PIB em 2023 é de apenas 0,79%, segundo o boletim Focus, do BC. Já a expectativa para a inflação está em alta. A expansão do IPCA deve ser de 5,78%, segundo as instituições consultadas pelo BC. É a avaliação de que a inflação vai superar a meta estabelecida (3,25%), com tolerância de 1,5 ponto percentual, que levou o BC a manter a taxa Selic em patamar elevado. Pesa a favor de Campos Neto o fato de que a instituição que preside também sofreu críticas semelhantes de Paulo Guedes. O ex-ministro também reclamou da alta dos juros no final do governo Bolsonaro. O atual ciclo de expansão da Selic, além disso, conseguiu derrubar a inflação, que havia atingido 10,06% em 2021.

ALVO Presidente do BC, Roberto Campos Neto virou bode expiatório das dificuldades na economia (Crédito: Fátima Meira)

Resultados rápidos

Lula quer apresentar resultados rápidos, e sabe que os juros altos estão desacelerando a economia. Por isso, escala sua retórica, inclusive chamando de “bobagem” a autonomia do Banco Central, que é garantida em lei. Para ele, mais fácil do que controlar a inflação é atacar quem precisa usar os instrumentos amargos para combater o aumento de preços. A declaração de Lula foi a senha para que vários aliados atacassem Campos Neto. “O Banco Central não deu um pio sobre as façanhas orçamentárias de Bolsonaro para se reeleger”, tuitou a presidente do PT, Gleisi Hoffmann. Guilherme Boulos (PSOL) disse que Campos Neto é um “infiltrado” de Bolsonaro que promove um “boicote” à economia.

Ao invés de fritar o responsável pela autoridade monetária, o presidente deveria apoiar seu próprio ministro da Fazenda, que tenta demonstrar aos empresários e investidores que o governo baixará o déficit. Haddad tem evitado polemizar com Campos Neto e chegou a declarar que a ata do Copom foi mais “amigável” do que o comunicado inicial. “Lula fala o que maioria pensa sobre o BC, mas vai respeitar mandato de Campos Neto”, contemporizou Jaques Wagner, líder do governo no Senado. Alertado que a guerra contra o BC estava se voltando contra o governo, Lula saiu pela tangente e disse que cabe ao Senado ficar “vigilante” sobre o Banco Central e a taxa de juros. Mas não diminuiu a temperatura. “Confio que a economia vai voltar a crescer, depende muito de nós. A gente não tem que pedir licença para governar”, disse a ministros e aliados na quarta-feira, dobrando a aposta.

O problema é que o destempero presidencial tem aumentado as taxas de juros futuros e piorado a expectativa com a inflação. Ou seja, Lula está prejudicando os resultados da própria gestão. O comportamento errático não começou agora. Desde a campanha, o petista evitou apresentar um programa econômico. Demorou para definir sua equipe na área e ainda deu várias declarações contra o “mercado”, tripudiando a preocupação com a responsabilidade fiscal. Isso só ampliou o temor de descontrole nas contas públicas e de leniência com a inflação.

Além desse ruído que não para de crescer, aliados de Lula veem com dificuldade a ideia de emplacar uma agenda positiva. Isso porque os esforços e a atenção midiática estão concentrados na formação dos blocos partidários e alianças que se formam no Congresso para garantir a votação de pautas classificadas como fundamentais pela gestão, a exemplo da Reforma Tributária. O governo considera que as ações econômicas são prioridade para gerar uma dinâmica favorável. Numa reunião fechada, realizada no Ministério da Fazenda com o ministro-chefe da Secretaria de Relações Institucionais, Alexandre Padilha, e líderes de siglas que compõem o governo, a frase que mais se ouviu do ministro Fernando Haddad foi “é para o Brasil voltar a crescer”.

À ISTOÉ, fontes do Palácio do Planalto afirmaram que, embora exista um clima de tensão instalado logo no início do governo, o presidente permanece tranquilo sobre os rumos da agenda. Mesmo assim, cobra de seus correligionários posturas mais incisivas para demonstrar uma “virada de página”. A principal iniciativa para superar os problemas enfrentados desde o início de janeiro já está bem definido, segundo interlocutores: viagens pelo Brasil na divulgação de ações de combate à insegurança alimentar e incentivo à agricultura familiar, reforço nas reuniões internacionais para mostrar o retorno da política externa brasileira, além da divulgação do programa “Minha Casa, Minha Vida”, já prevendo a entrega de pelo menos 80% das 120 mil unidades previstas numa primeira etapa.

Visitas ao exterior

O esforço de ganhar protagonismo internacional já fez Lula viajar para Buenos Aires e Uruguai. Nesta sexta-feira, 10, ele se reúne nos EUA com o presidente Joe Biden. Enquanto isso, o ministro da Casa Civil, Rui Costa, foi escalado para prospectar nos ministérios as iniciativas que possam embasar um dossiê de realizações iniciais. Ele tem a incumbência de preparar um cronograma de viagens para lançar e relançar programas, obras paradas e investimentos pelo País. Ironicamente, a viagem ao Rio para acompanhar a posse de Mercadante fazia parte dessa agenda. O anúncio no Rio da liberação de R$ 600 milhões para estados e municípios, para o Programa Nacional de Redução das Filas de Cirurgias e Consultas no SUS, também. Mas as duas agendas foram ofuscadas pelo barulho que Lula criou na economia. Agora, a ideia é que agenda “deslanche” após a volta de Lula dos EUA (apesar do Carnaval).

VITRINE Lula inaugura unidades do complexo Super Centro Carioca de Saúde com o prefeito Eduardo Paes (à dir.), dia 6 (Crédito:Ricardo Stuckert/PR)

Costa mira especialmente as pastas de infraestrutura: Cidades, Transportes e Desenvolvimento Regional. Elas precisam apresentar projetos visíveis à população. Ele já tinha tentado relançar em janeiro o programa habitacional que é bandeira histórica do PT. Mas uma inauguração de unidades precisou ser adiada porque as obras não estavam prontas. Agora, a oficialização da volta do programa ocorrerá na terça-feira, 14, na Bahia. O objetivo é entregar 96 mil residências ainda no primeiro semestre deste ano. Em seguida, Lula deve ir a Sergipe lançar obras em rodovias federais. No início de março, haverá entrega de moradias em Rondonópolis (MT). Há ainda viagens previstas para as regiões Norte e Sul. Outras bandeiras que podem também engordar a agenda envolvem programas como o Bolsa Família, o Farmácia Popular e o “Desenrola”, programa que o Ministério da Fazenda prepara para renegociar as dívidas de 50 milhões de pessoas.

Tentar focar neles, no entanto, em meio à crise humanitária nas terras yanomami e aos desgates políticos causados na formação de ministérios, ainda representa um “risco de não ter a atenção desejada para as pautas”, avalia um aliado do PSB. “Ele (Lula) tem tempo hábil para isso (uma agenda positiva), mas já está enfrentando de cara o desafio da base no Congresso. Sem ela, não adianta agenda.” Aliados já temem que o governo não consiga construir um balanço robusto nos primeiros 100 dias de governo, quando tradicionalmente a gestão tem de “mostrar a que veio”. A ordem no Planalto é que toda e qualquer pauta que seja desvirtuada ou tachada como negativa pela oposição seja defendida nas redes sociais de quem integra o governo. O objetivo é que todos “falem a mesma língua”, combatendo eventuais fake news de grupos bolsonaristas e reforçando a ideia de “reconstrução do Brasil”, mote já utilizado na campanha à Presidência. “É um mês de governo. Praticamente sentamos e administramos os problemas. Então no mês que vem começamos a tocar. As pautas vão começar a andar a partir do fim do mês, assim como essa virada de página”, afirma um governista.

LEI DUVIDOSA O ministro da Justiça, Flávio Dino, preparou o pacote da democracia: Medida Provisória é contestada (Crédito:MAURO PIMENTEL)

Outra grande iniciativa do governo também custa a deslanchar. O Pacote da Democracia do ministro da Justiça, Flávio Dino, nem foi apresentado ao Congresso, mas já recebe críticas. Ele prevê uma Medida Provisória destinada a punir as redes sociais por não coibirem fake news e ataques à democracia. Mas a MP se sobrepõe a um Projeto de Lei que já tramita na Câmara com esse objetivo, relatado pelo deputado Orlando Silva (PCdoB). O presidente da Câmara, Arthur Lira, quer acelerar o texto da Casa. E ainda há dúvidas sobre a constitucionalidade de uma MP do presidente para tratar do tema. A “reação oficial” aos ataques de 8 de janeiro pode se limitar à difícil e morosa tarefa de desmilitarizar o governo, já que a própria CPI dos atos golpistas pode nem sair do papel, pois Lula trabalha para que não seja viabilizada.

O governo corre contra o tempo. Por enquanto, tem repetido a estratégia de demonizar a “herança maldita”. Mirar o BC é reproduzir isso também na área econômica. Outra cortina de fumaça é manter a polarização. Também na cerimônia no BNDES, Lula disse que os ataques de 8 de janeiro representaram a “revolta dos ricos que perderam a eleição”. Além de estapafúrdia, a declaração joga por terra qualquer tentativa de pacificação e vai contra o discurso de reconciliação nacional que marcou a vitória de outubro. Assim, o presidente apenas queima o capital político mais rapidamente, ao invés de angariar apoios para o que pretende realizar nos próximos em quatro anos. Está na hora de descer do palanque.

Colaborou Dyepeson Martins