Um fato não tem absolutamente nada a ver com o outro, mas às vezes o destino elabora, com meras coincidências, boas referências históricas. No Brasil, com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva para a Presidência da República, voltou-se a respirar ares democráticos e foi-se embora o risco de o País retroceder politicamente a uma ditadura militar. No Vaticano, o papa Francisco vem sendo uma ativa e combatente voz contra regimes totalitários. É com Lula aqui, e Francisco lá, que um líder religioso brasileiro de prestígio mundial na luta pelos direitos humanos e pela democracia política e social, falecido aos 90 anos em 1999, teve agora oficializada a abertura de seu processo de beatificação. Está colocada, assim, a feliz coincidência – e, no centro dela, encontra-se o cearense dom Hélder Câmara, um dos fundadores da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. O anúncio de que o caminho a levá-lo ao estágio de beato e, posteriormente, ao de santo está aberto foi feito por dom Antônio Fernando Saburido, arcebispo de Olinda e Recife, mesma função que dom Hélder exerceu durante o regime de exceção instaurado no Brasil em 1964. Ele foi também bispo auxiliar do Rio de Janeiro.

HISTÓRIA Dom Hélder e os humildes (ao lado) e com o marechal Humberto de Alencar Castelo Branco, primeiro presidente do período de exceção: perseguição implacável (Crédito:Divulgação/ UH/Folhapress)

De acordo com dom Saburido, tem inicio nesse momento do processo a chamada fase Romana, na qual o “Departamento das Causas dos Santos aguarda a nomeação de um relator que preparará o documento denominado Positivo”. Em palavras laicas é a reunião das provas colhidas a mostrarem que dom Hélder atravessou a vida em defesa dos desvalidos e da democracia enquanto lógica política para a Nação viver com dignidade. Após a beatificação, confirmada pelo papa Francisco, virá a canonização. Dom Saburido acrescentou que no 18º Congresso Eucarístico “os fiéis demonstraram enorme felicidade” em saber que um dos sacerdotes mais queridos do País logo se tornará santo. “Uma grande alegria encheu os corações e vamos rezar para que tenhamos, o quanto antes, a satisfação de ver dom Hélder santificado”, afirmou Saburido. E foi além: “dom Hélder merece o reconhecimento da Igreja Católica por suas virtudes e valores. Ele significou modelo de vida para todos nós”.

Se Madre Teresa de Calcutá tivesse nascido homem ela seria dom Hélder; e vice-versa

Dom Hélder nunca escondeu a pontinha de vaidade que alimentava por ser dono de extrema inteligência, cultura, garra, alegria e carisma – e, quando moço, sabia jogar o seu charme. Ele teve o seu nome internacionalmente exaltado devido ao destemor em denunciar os crimes cometidos pelos militares durante a ditadura e, cabe lembrar, que a partir da noite de 13 de dezembro de 1968, com a decretação do famigerado AI-5, passou a ser ainda mais duramente perseguido: rotulado de comunista, persistiu na proteção a presos políticos. Nos EUA foi-lhe concedido o prêmio que leva o nome de outro consagrado defensor dos direitos humanos: Martin Luther King. Em terras europeias diplomaram-no doutor honoris causa. Por quatro vezes dom Hélder foi indicado ao Prêmio Nobel da Paz, e, em uma dessas ocasiões, o presidente general Emílio Garrastazu Médici orientou pessoalmente o embaixador brasileiro na Noruega a “fazer de tudo evitando que tal láurea fosse conferida ao religioso”. A farda venceu a batina. Mas, como dizem os premonitórios coros das tragédias gregas, “a história ainda não acabou”.

DESTINO O arcebispo com Madre Teresa: mesmo estilo de atuação e igual carisma que os tornaram grandes amigos e confidentes (Crédito:PIERRE VERDY)

“O regime ditatorial o chamava de bispo vermelho numa alusão ao comunismo. Só que dom Hélder foi um cristão que viveu em função da causa que achava justa”, diz o historiador e teólogo paulista Gerson Leite de Morais. “Queria salvar da fome o povo excluído e promovia os direitos humanos”. O tempo passou e houve a fadiga de material do regime de exceção; o tempo seguiu a passar e chegou-se a 1999. A revista ISTOÉ, em excelente iniciativa, decidiu então eleger os Brasileiros do Século por meio do voto dos leitores. Dom Hélder Câmara, mesmo tendo falecido, foi um dos nomes mais votados para ganhar o título na categoria Religião. No ensanguentado Brasil que se estendeu de 1964 a 1985, com homens de ombros estrelados e mentes nubladas no comando da Nação, a barra foi pesada para gente tipo dom Hélder. Ele, no entanto, nunca esmoreceu, mesmo quando personagens famosos da sociedade civil o ofendiam em sua prática religiosa, como o fez o escritor, cronista e dramaturgo Nelson Rodrigues. Certa vez ele disse: “dom Hélder só olha o céu para saber se leva ou não guarda-chuva quando sai de casa”. Foi pesada a ironia. Pesou mais ainda quando Nelson o chamou de “padre de passeata”. Dom Hélder ria. Mesma escola, igual estilo, idêntica bonomia a de Madre Teresa de Calcutá. Aliás, pode-se afirmar que se Madre Teresa tivesse nascido homem ela seria dom Hélder; e vice-versa.