29/01/2021 - 9:30
O lançamento da biografia de João Carlos Botezelli causaria pouco alvoroço no mundo musical. Músicos da Velha Guarda dariam de ombros diante da notícia, e voltariam aos seus sambas como se nada tivesse acontecido. Ao substituir o nome oficial do homenageado por seu apelido de guerra, a coisa muda de figura. O anônimo Botezelli é, na verdade, Pelão, um dos mais importantes produtores da história da música brasileira.
O mundo pode até ser um moinho, mas nunca reduziu as ilusões de Pelão. Primeiro, porque o paulista nascido em São José do Rio Preto jamais teve sonhos mesquinhos. Depois, porque ele realizou ao menos um dos desejos a que se propôs na vida: dar voz a grandes nomes do samba que viviam sem o reconhecimento merecido. Quanto ao outro desejo, o de revolucionar o País, não obteve sucesso – disposição para a luta não lhe faltou, o Brasil é que é complicado, mesmo.
“Pelão lutava para registrar o trabalho dos compositores que estavam sem espaço no mercado e, por isso, era respeitado tanto pelos músicos quanto pela crítica”
Carlinhos Vergueiro, compositor, cantor e músico
A biografia “Pelão — A Revolução pela Música”, de Celso de Campos Jr., conta pouco da vida do homem, mas muito da carreira do produtor. Não é uma biografia tradicional, com começo, meio e fim: está mais para uma coleção de “causos”. “Quis documentar a relação pessoal que ele tinha com os artistas, uma parte essencial de seu trabalho”, afirma o autor. “Seria difícil traçar uma linha cronológica, cada projeto era tocado de acordo com a personalidade do artista.” Pelão ficou conhecido pela justiça que fez a inúmeros compositores.
HISTÓRIA Carlinhos Vergueiro com Cartola, Adoniran e Nelson Cavaquinho, com Pelão: “a voz dos compositores do povo tem de ser ouvida por todos”, ensinava o produtor
Após trabalhar como produtor musical na TV Tupi, aventurou-se pelo mundo das gravadoras. Seu projeto de estreia foi um álbum de Nelson Cavaquinho, o primeiro a trazer de verdade o som único de violão que mais tarde o consagraria. Pelão apresentou a ideia a Milton Miranda, diretor da Odeon, alegando que a verdadeira essência do sambista não havia sido capturada em seus dois primeiros discos. “O Nelson não está ali. Quero colocar a verdadeira lenda dos bares, ele e o violão dele, com o suor dele”, afirmou.
O sucesso do disco o levou a um novo resgate: apesar de já ser considerado um dos maiores compositores do País, Adoniran Barbosa nunca havia se lançado como cantor. Graças a Pelão, o ansioso paulista lançou seu primeiro disco aos 64 anos. Os dois projetos de Pelão tinham em comum um reforço de peso: a direção musical do maestro José Briamonte, o mais renomado arranjador da época.
Pelão seguiu a mesma estratégia para tornar eterna a voz de Angenor de Oliveira – o mestre Cartola. Aos 65 anos, o maior poeta da Mangueira nunca tinha entrado em um estúdio. Aos 21, Cartola já vendia sambas que seriam gravados por nomes como Carmen Miranda e Francisco Alves. Com a gravação, o nome que aparecia apenas nos créditos de canções inesquecíveis ganharia não apenas uma voz, mas um rosto. Pelão ainda repetiria a fórmula com Donga, Carlos Cachaça, Radamés Gnattali, Nelson Sargento, Guilherme de Brito — a lista é enorme e lendária.
Campos decidiu escrever a biografia de Pelão quando escrevia sobre a vida de Adoniran. “O nome dele comeceu a aparecer com frequência”, lembra Campos. “Foi aí que veio a ideia de contar a história do homem que pouca gente conhece, mas que está por trás de alguns dos mais importantes discos brasileiros.” O compositor, cantor e músico Carlinhos Vergueiro lembra do trabalho minucioso. “Pelão era obstinado. Dos músicos às negociações com a gravadora, cuidava de todos os detalhes”, diz Carlinhos. “Ele lutava para registrar o trabalho de grandes compositores que estavam sem espaço no mercado e, por isso, era respeitado tanto pelos músicos quanto pela crítica”.
Aos 78 anos, Pelão está feliz. O livro representa, de certa forma, o mesmo resgate que ele buscou em seus projetos. “Aqui está boa parte da minha vida”, diz, emocionado. “Nunca imaginaria que aquilo teria essa repercussão tanto tempo depois.” Foram-se seus vinte anos de idade, já vai longe a mocidade, mas Pelão segue firme seu caminho – sempre pisando em folhas secas, como cantava Nelson Cavaquinho.
LANÇAMENTO
“Pelão – A Revolução pela Música”
Celso de Campos Jr.
Garoa Livros | Preço: R$ 50 (garoalivros.com.br)