07/07/2023 - 8:00
Apenas com seis meses de gestão, depois de um início tumultuado por uma tentativa de golpe e enfrentando um Congresso majoritariamente oposicionista, o governo Lula conseguiu conquistar uma grande vitória: a aprovação da Reforma Tributária. Depois de 35 anos de discussão, finalmente essa mudança radical na forma como os impostos são cobrados e distribuídos no País poderá se concretizar, com profundo impacto na economia e na vida do consumidor.
A reforma simplifica a arrecadação e elimina vários impostos federais, estaduais e municipais, substituindo-os por um Imposto de Valor Agregado (IVA), dividido em duas taxas: a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), federal, e o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), para estados e municípios.
É uma grande transformação. O Brasil tem um dos sistemas mais caóticos do mundo, com taxações que se sobrepõem, setores privilegiados e subsídios irracionais que foram se acumulando ao longo das décadas em uma infinidade de normas, o que cria uma situação kafkiana para as empresas, obrigadas a lidar (e arcar financeiramente) com regras disfuncionais.
Isso também gerou uma guerra fiscal não declarada entre os entes federativos que beneficia as regiões apenas parcialmente, mas penaliza seguramente o conjunto do País.
O resultado é fuga de investimentos, baixa produtividade, desestímulo à inovação e à pesquisa, alta nos custos e escassez de itens de alto valor agregado, como eletrônicos.

Essa não é a única razão de o País ter registrado um crescimento abaixo da média internacional nas últimas décadas.
Os “voos de galinha” da economia, assim como duas “décadas perdidas” desde a redemocratização, ocorreram em grande medida por apostas desastradas e irreais em investimentos públicos bilionários, pela gestão temerária da política monetária, pela leniência com a inflação ou por pura irresponsabilidade fiscal.
Mas é opinião quase unânime entre os especialistas que o atual sistema de arrecadação é um freio de mão puxado no desenvolvimento. Sua alteração vai mudar o jogo.
A aprovação da Reforma é gol para muita gente
A oportunidade rara de aprovar uma reforma tão básica surgiu por uma conjunção de fatores políticos. O presidente da Câmara, Arthur Lira, quer deixar uma marca com a efetivação de grandes reformas estruturais.
Apesar de ter sido alçado ao poder pelo governo Bolsonaro, e ter maculado sua gestão com o orçamento secreto (já derrubado pelo STF), Lira encontrou na aprovação de pautas econômicas uma forma de aumentar o poder legislativo, fortalecer sua própria liderança e se diferenciar da agenda petista.
Já Lula, por meio do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, pode “montar no cavalo selado” que passa diante dele, tornando-se o pai de uma transformação fundamental, mesmo que tenha ocupado um papel secundário nesse projeto, que até a eleição passada nunca foi prioridade para o PT.
Como disse Haddad, a Reforma Tributária pode virar “um novo Plano Real”.

Lula diz que esse é um projeto mais da sociedade do que do Congresso ou do governo. Há algo de cálculo político também nesse desprendimento: ele não desejava ser tachado por uma derrota, no caso de a reforma naufragar.
O relator da PEC no Congresso, deputado Aguinaldo Ribeiro, concorda que é um projeto de Estado.
O texto se originou de duas propostas que transitaram na Câmara e no Senado nos últimos anos e foram extensivamente debatidas, em tratativas lideradas por economistas como Bernard Appy, mentor do atual projeto.
Ele já havia atuado nas primeiras gestões de Lula e foi designado secretário extraordinário da Reforma Tributária. Lidera, pelo lado do governo, o espinhoso ajuste técnico e normativo.
Pressão em brasília
Aliado de Arthur Lira, Ribeiro se empenhou nos últimos meses para viabilizar uma mudança que afeta profundamente os entes federativos e diversos setores da economia.
As prefeituras, que ganharam novas atribuições constitucionais ao longo do tempo, temem perder arrecadação. Por isso, seus representantes correram a Brasília na última semana para tentar reabrir as discussões.
Na terça-feira, uma reunião contou com aliados de Lula, como o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, e do Recife, João Campos. Liderados pelo prefeito de Aracaju, Ednaldo Nogueira, eles protestaram contra a pressa para a aprovação e afirmaram que não foram ouvidos.
Segundo Ednaldo, o movimento não é partidário, mas a favor das pessoas que mais precisam de serviços públicos, pois é nas cidades em que eles são executados. “Há um consenso. Todos queremos a reforma”, afirmou.
Porém, os prefeitos criticam a ampla concentração de recursos na União.
“Não é democrático. Aumenta imposto, fere o pacto federativo.”
Ricardo Nunes, prefeito de São Paulo
“Todo mundo defende a reforma, porque o nosso sistema é desorganizado.”
João Campos, prefeito do Recife
João Campos é do PSB, mesmo partido de Geraldo Alckmin (o vice já declarou: “o Brasil tem um manicômio tributário”).
Na quarta-feira, foi a vez de os governadores ocuparem o Congresso, liderados por Tarcísio de Freitas. Ele já havia reunido empresários e parlamentares no fim de semana anterior no Palácio dos Bandeirantes, e seu principal alvo era o Conselho Federativo, órgão a ser criado para arbitrar o novo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), que substituirá o ICMS e o ISS.
Para Tarcísio, os estados deveriam manter a arrecadação, como ocorre atualmente, e deveria ser criada uma “câmara de compensação” para a redistribuição entre os entes federados, já que o imposto passará a ser cobrado apenas no destino, e não mais na origem.
O governador também considera que São Paulo, o maior produtor do País, e portanto o maior arrecadador, pode ficar refém de uma entidade que terá uma composição desfavorável às unidades mais populosas.
Ele quer uma representação que respeite o peso dos maiores estados. Os governadores do Rio (Cláudio Castro) e de Minas (Romeu Zema) endossaram a iniciativa. Já Appy disse que a proposta poderia estimular um “calote federativo”.
Ronaldo Caiado, governador de Goiás, é um dos críticos mais radicais e refuta o fim da “guerra fiscal”, já que ela faria parte do arsenal que os estados têm para atrair empresas e seria praticada em todo o mundo.
Mas a ideia do projeto é exatamente acabar com essas deduções “predatórias” e com impostos em cascata, além de eliminar o cipoal de regras que espanta (e afasta) os investidores estrangeiros.
Os estados que já concedem benefícios, no entanto, não estarão desassistidos, pois haverá um Fundo de Compensação de Benefícios Fiscais, que vai fazer aportes anuais a partir de 2025.
E um Fundo de Desenvolvimento Regional (FDR) vai permitir que os estados financiem novos empreendimentos, compensando o fim desse “arsenal”.
O governo federal decidiu bancar esse fundo para destravar as negociações, oferecendo R$ 40 bilhões anuais. Os governadores queriam R$ 75 bilhões.
E Tarcísio, de última hora, tentava aumentar a parcela que caberá a São Paulo para esses recursos. Queria estabelecer um critério de divisão que respeitasse o número de inscritos no Bolsa Família em cada unidade federativa, por exemplo.
As negociações febris tiveram a liderança de Arthur Lira e o apoio do Ministério da Fazenda, que estava preocupado com a aprovação simultânea no Congresso de três medidas econômicas vitais para os planos de Lula:
* PEC da Reforma Tributária,
* projeto de lei do Carf
* e o novo arcabouço fiscal, essencial para manter a trajetória de queda do dólar e permitir a queda mais rápida da Selic.
Para isso, Lula liberou um lote recorde de emendas, no valor de R$ 5,3 bilhões. Esse esforço neutralizou a tentativa de Jair Bolsonaro de capitalizar seu grupo com o naufrágio da reforma — uma janela de oportunidade, já que ele precisa sair das cordas após ter ficado inelegível. Por isso, apelidou o projeto de “reforma do PT”.

Mas não colou. O capitão e Valdemar Costa Neto tentaram fechar questão para que o PL (99 deputados) fechasse questão contra a proposta, que precisaria de três quintos dos deputados (308 votos) e senadores (49).
Numa reunião tensa, tentaram também arregimentar deputados do Republicanos e do União, que faz parte da base do governo.
Mas a manobra naufragou. A tentativa de Bolsonaro de liderar a oposição virou um fiasco. Seus aliados decidiram apoiar a reforma. O PL resolveu não punir os votos dissidentes. Contou para essa decisão a força de Lira e do Centrão.
“Erra quem tenta politizar a Reforma Tributária”, advertiu o presidente da Câmara.
“Não vou entrar em briga de Bolsonaro com Lula”, concordou o relator, Aguinaldo Ribeiro.
O próprio Tarcísio, que tenta se equilibrar na base de Bolsonaro, no final aceitou as modificações que seriam feitas pelo relator, e disse que tentaria convencer Bolsonaro de que a reforma é positiva.
Para ele, o ex-presidente poderia se beneficiar dizendo que o projeto “começou em seu governo”. No fim, Tarcísio desarmou a tarantada bolsonarista e bancou a reforma, dizendo que “concorda 95% com ela”.

Últimos ajustes
O segundo maior bloco da Câmara, de 142 deputados que inclui MDB, Republicanos, PSD e Podemos, estava perto de fechar questão pela aprovação.
O Republicanos, do governador Tarcísio, decidiu “apoiar incondicionalmente” o texto, o que dificultou ainda mais a ação de Bolsonaro.
Na quinta-feira, Lira e Ribeiro costuraram as últimas mudanças para garantir a aprovação. O pleito de Tarcísio, de mudar a governança do Conselho Federativo, caminhava para ser atendido parcialmente, apesar de sua reivindicação de criar uma “câmara de compensação” ter sido rejeitada.
Foi antecipada a transição dos dois novos tributos (CBS e IBS), que começarão a ser aplicados de forma experimental em 2026. E foi garantida a isenção dos produtos de uma cesta básica nacional, como desejavam os governadores e o setor de supermercados. A votação deveria começar no final do dia, mas todos davam como certa a aprovação do texto. A mudança histórica virou uma realidade, contra todos os prognósticos.
Como Aguinaldo Ribeiro já havia antecipado, o maior desafio era convencer a sociedade de que a reforma era necessária e inadiável.
Especialista tributário e CEO da Tax All Consultoria Tributária, Eduardo Araújo reconheceu que faltou discussão com a sociedade e que poderá haver impactos negativos. Mas defendeu a mudança.
“Temos mais de 443 mil normas tributárias publicadas e, a cada dia, são mais de 46 entendimentos ou alterações, seja na esfera estadual, municipal ou federal.”
Eduardo Araújo , especialista tributário
Para ele, é impossível que uma empresa nacional esteja 100% atualizada com todas as matérias tributárias. Além disso, o Brasil tem um passivo tributário em discussão que ultrapassa R$ 3 trilhões, ou quase um terço do PIB. “Algo está errado. A grande quantidade de normas e a falta de segurança jurídica são os maiores problemas.”
Vanessa Canado, ex-assessora especial de Reforma Tributária de Paulo Guedes, disse que haverá mais transparência. “Esse é o primeiro ganho da sociedade em termos de exercício de cidadania fiscal, de pressão política”, diz.
Ela acha que a mudança pode gerar um crescimento econômico que se refletirá na vida das pessoas. “Significa mais empregos. Os empregos vão pagar salários melhores e o Brasil será um País um pouco mais rico do que era antigamente, como aconteceu com a Índia, com a China, com o Chile e vários países em desenvolvimento”, avalia.
E o ambiente de negócios ficará melhor não apenas para o empresário, mas também para o consumidor e o empregado. Para ela, pode haver concorrência real entre as empresas.
“Para as pessoas haverá produtos mais baratos e com melhor qualidade porque as companhias estarão competindo por eficiência e não mais por benefício tributários.”
Vanessa Canado, ex-assessora especial de Reforma Tributária de Paulo Guedes
Setores prejudicados
Mas esse otimismo não é compartilhado por setores que se declaram prejudicados. Se a indústria tende a se beneficiar (porque tem uma longa cadeia de componentes), o segmento de serviços, que paga alíquotas menores, passará a ser mais taxado.
Uma das reivindicações do setor, que tradicionalmente emprega mais, é a desoneração da folha de pagamentos, mas qualquer decisão nessa área ficará para leis complementares.
O governo argumentou que haverá mais consumo com as mudanças e portanto o segmento se beneficiará. Mas isso não convence líderes do setor.
Para João Diniz, presidente da Cebrasse (Central Brasileira do Setor de Serviços), “é falacioso o argumento de que serviço será beneficiado”. “Quanto mais emprega, menos chance o setor tem de compensação. Por isso, considero que essa é a PEC do desemprego. É a reforma feita sob medida para a indústria e para o setor financeiro“, protesta.
Diniz também contesta a alíquota comum, que será calculada apenas mais tarde. “Será o maior IVA do mundo, pois o maior da OCDE é da Hungria, de 27%, e estamos projetando o do Brasil em 30%. Sem contar que alíquotas únicas só existem na Dinamarca.”
O governo evita cravar uma estimativa para essa alíquota, mas admite que ficará em cerca de 25%.
Manifestos
Numa primeira fase, apenas impostos sobre o consumo serão afetados.
Mudanças nos impostos sobre a renda, como o próprio Imposto de Renda, devem ficar para um projeto de lei que o Executivo deve enviar ao Congresso até seis meses após a promulgação da PEC.
O texto da reforma tributária também incluirá novidades. “O IPVA passa a incidir sobre embarcações e aeronaves, coisa que até então não existia no Brasil”, diz Gabriel Quintanilha, professor de Direito Tributário da FGV-Rio.
“Você passa a ter uma alíquota progressiva obrigatória para o imposto de transmissão, por mortes e doação”, afirma.
O especialista alerta que poderá haver aumento da carga tributária, apesar da promessa de que ela não aumentará. “O setor de serviços vai realmente ser impactado, e o consumidor final vai sentir no bolso esse repasse do aumento da carga tributária.”
Para ele, a mudança provavelmente vai simplificar o sistema para o empresário, mas para o consumidor é possível que haja um aumento nos preços, pelo menos no tocante aos serviços.
Apesar da oposição de alguns setores, economistas e empresários se mobilizaram em defesa da reforma. Um manifesto de economistas e empresários reuniu nomes como Armínio Fraga, Affonso Celso Pastore, Edmar Bacha, José Roberto Mendonça de Barros e Pedro Passos.
A Fiesp também lançou um documento de apoio às mudanças com a assinatura de 138 entidades.
Essas iniciativas deram mais musculatura para a aprovação, mas a dinâmica das negociações já estava selada.
Depois de a democracia sofrer sucessivos testes de estresse nos últimos anos, e com a sociedade ainda amortecida e dividida pela polarização, é auspicioso que essa reforma se concretize. Apesar de todos os problemas, as instituições conseguiram fazer avançar uma agenda vital para diminuir o custo Brasil e recolocar o País no rumo do crescimento, mesmo que só as próximas gerações se beneficiem plenamente.