01/04/2022 - 9:30
Todos os anos, durante o Lollapalooza, sou invadido por enorme melancolia.
Conheço aquele universo como poucos.
Ali, assisti às apresentações das mais esquecidas bandas.
Dancei com pipoqueiros.
Usei shorts jeans apertado e barba rala para me misturar aos nativos.
E, num passado não tão remoto, conheci a dor e o odor dos banheiros químicos.
Hoje, como veterano, assisto a tudo através do conforto de meu combo TV e ar condicionado.
Naquele tempo, reconheço, frequentava o Festival num esforço de me enganar duplamente.
Na camada consciente, acreditava que minhas filhas precisavam de minha presença por uma questão de segurança.
No inconsciente, a leitura de Em Busca do Tempo Perdido (Proust, Marcel, págs. 847 à 1654) me convenceu que apenas buscava preservar farelos de minha juventude.
Hoje, mais maduro, assumi que minhas filhas devem se cuidar sozinhas e que não tenho mais idade para esportes radicais.
Por que, se de um lado o Festival injeta adrenalina nas mentes, por outro se constitui num risco imenso aos ligamentos.
Um momento de consagração dos poderes da Deusa Música.
Um momento de desafio à humana Indústria Farmacêutica.
Enquanto escrevo, me ocorre que na segunda-feira após minha última incursão ao evento, tamanha dor me assediava, que recorri a um quiropraxista indicado por amigos.
O homem me recebeu em seu sobrado da Vila Mariana, trajando uma camiseta branca com pequenos furos, um par de Havaianas e bermudas de algodão.
Deveria ter desconfiado que aquela não era a vestimenta de um profissional da saúde.
Mas, em desespero, permiti que exercesse sobre mim sua técnica supostamente milagrosa.
Voltando para casa, lágrimas escorriam dos meus olhos.
A dor nas vértebras imposta pelo Festival havia sido superada pelo espancamento deste que, hoje, garanto se tratar de um membro da Yakusa.
Por tudo isso, me sinto capacitado para reconhecer, mesmo pela TV, o sentimento maior que a platéia reverbera.
Não é prazer. Não é euforia. Não é fanatismo.
É dor mesmo.
Testemunho jovens sofrendo, ao vivo, a avassaladora destruição de suas frágeis articulações.
Dores nos pés, desacostumados a caminhar depois de anos de quarentena.
Dores lombares, por horas em pé – aqueles mais finos que se recusam a sentar no barro.
Calcanhares e joelhos sendo corroídos pela topografia de Interlagos.
Dores no pescoço, nos ombros, e, principalmente, na coluna.
Ah, a coluna.
Quando Anitta sobe ao palco, me ajoelho diante do Multishow e imploro que os namorados não levem suas parceiras aos ombros.
É inútil. Numa nobre atitude para melhorar a experiência de suas amadas, posso ouvir, mesmo sob os decibéis da banda, o inconfundível som das hérnias cervicais se formando.
Discos intervertebrais esmagados, impondo o vazamento do núcleo pulposo, criando uma protusão discal que, com o tempo, inexoravelmente cobrará seu preço.
Pela saúde de nossos jovens, precisamos tomar uma atitude
Uma geração inteira de hérnicos.
E para que?
Vejo Miley Cyrus a se contorcer no palco numa perfeita metáfora do futuro de dor da plateia.
É mais do que hora da sociedade tomar uma atitude.
Evidente que jamais poderia sugerir o fim do Festival.
Mas cabe aos organizadores assumirem a responsabilidade de alertar o público do risco que estão correndo.
Ano que vem, fica a sugestão de, ao menos, novos patrocinadores assumirem o evento.
Ficarei aliviado ao ver, em letras garrafais: Palco Novalgina. Palco Tandrilax. Área de descanso Salompas.
E finalmente o palco onde ocorre o show do headliner da noite: Palco Tylex.
Este último aberto apenas aos que apresentarem receita médica, é claro.