21/01/2022 - 9:30

Medindo apenas 40 centímetros, confeccionada a partir de retalhos velhos de uma saia, com olhos de fios de seda e recheada de fibra de macela, foi exatamente assim que em 1920 nasceu a boneca de pano mais amada e conhecida do Brasil: a “Excelentíssima Senhora Dona Emília”, como seu pai, Monteiro Lobato, a chamava. A fiel companheira de Narizinho no Sítio do Pica-Pau Amarelo acabou se tornando a melhor amiga de milhares de crianças brasileiras. Sinônimo de simplicidade, as bonecas de pano eram, antigamente, uma alternativa para as famílias que não tinham condições de comprar brinquedos industriais – como as famosas Barbie. Costuradas com máquina, não demorava mais do que algumas horas para ser feita, às vezes pela própria mãe. Agora, elas voltaram a ser cobiçadas pelas crianças e viraram um produto artesanal de grande demanda, por permitirem facilmente a customização, atendendo minorias e grupos étnicos variados.

Durante a pandemia, o mercado, que se desenvolve principalmente pela internet, não sofreu o mesmo abalo do comércio em geral, ao contrário, cresceu, e muito. O cenário para esses bonecos também mudou. Ter um parceiro de tecido ultimamente, além de uma retomada da tradição e do sentido de afeto pelo brinquedo, também pode ser sinônimo de exclusividade e luxo. Feito sob medida para o cliente, dependendo da loja e dos acessórios, o boneco pode valer até R$ 300 reais, mas de um modo geral eles ficam bem abaixo disso e são acessíveis. A crise econômica colocou em ação artesãos que estavam adormecidos. Muitos profissionais viram nas bonecas uma forma de aumentar a renda dentro de casa. Outro efeito percebido foi que tanto produzi-las, como possuí-las, pode trazer benefícios emocionais. Elas são um produto emblemático em tratamentos ocupacionais e seu manuseio traz conforto real para muitas crianças.
A mineira Deila Casadio, de 39 anos, é um exemplo desses artesãos emergentes que descobrem as propriedades terapêuticas das bonecas de pano. Ela havia acabado de dar à luz sua terceira filha quando entrou em uma depressão severa. “Não tinha dinheiro para comprar leite”, diz emocionada. Precisou mudar de cidade e depender financeiramente da ajuda de parentes. Uma freira começou a ajudá-la a confeccionar panos de prato como forma de aumentar a renda da família. Com muito estudo e noites em claro assistindo vídeos na internet, Deila passou a fazer lindas bonecas que hoje são vendidas em todo o Brasil, principalmente em Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro. “Comecei porque precisava ser curada e esses desafios me impulsionavam”, diz. Deila evoluiu tanto no negócio que hoje oferece cursos pagos que contam com mais de três mil inscritos, entre eles, alunos da Europa, África e Oceania interessados em artesanato.

Bonequeira há mais de uma década, Day Carlson, 40 anos, e o marido, Alain Carlson, 43, criaram um espaço especializado na criação de bonecas de pano para ajudar mulheres com depressão, senhoras da terceira idade que se sentiam sozinhas na pandemia, e para artesãos de um modo geral. O ateliê Coração de Pano, no interior de São Paulo, funciona como ambiente para as aulas que Day administra, mas também como local de colaboração entre profissionais do artesanato. “Cuidamos de muitas mulheres que queriam aprender a fazer bonecas de pano para tratar de uma depressão nessa pandemia”, diz. Além de proporcionar outra via para crianças acostumadas aos games, celulares e internet, os bonecos de pano são uma forma sustentável de trocar os brinquedos de plásticos por um tecido mais quente, aconchegante, que não machuca as crianças e ainda as ajudam a aprender fazer reciclagem. Os brinquedos de tecido também se encaixam na diversidade e inclusão.

“Quando eu era criança, não me sentia representada pelas bonecas das lojas de brinquedos. Todas loiras, brancas e de olhos claros” Antônia Joyce Venancio, idealizadora da loja Preta Pretinha
Enquanto os tradicionais lutam para conseguir fazer uma linha com bonecos negros e asiáticos em meses, bastam dois dias para artesãos criarem uma linha de três bonecas negras ou com deficiência – síndrome de down, cego, vitiligo, em muletas ou cadeiras de rodas. A empresa Preta Pretinha, atua com esse público há mais de 10 anos. “Quando era criança, não me sentia representada por nenhuma boneca na loja. Todas loiras, brancas de olhos claros. Sempre foi um sonho não só oferecer a representação para essas crianças, mas para todo ser humano”, afirma Antônia Joyce Venâncio, idealizadora da empresa.
Guizinho, o boneco de pano de Guilherme Kavaleski, 10 anos, chegou na vida do garoto depois que ele precisou fazer uma cirurgia nas duas pernas. O brinquedo foi confeccionado com as duas pernas engessadas, assim como as de Guilherme. Mas esse não foi o único detalhe que fez o menino não desgrudar do companheiro. Tanto Guilherme, quanto Guizinho, têm Síndrome de Down. “Virou o melhor amigo dele. Ele o leva para todos os lugares, cria histórias com ele, e começou a tratá-lo como um ser humano, como um filho”, afirma Paula Kavaleski, mãe de Guilherme. O brinquedo, no caso do garoto, o ajudou na socialização, comunicação e na imaginação criativa. A beleza não está apenas no luxo e na confecção, mas na imaginação de todos aqueles que brincam com esses pequenos, mas poderosos artesanatos de pano.