31/03/2023 - 9:30
O número de casais sem filhos vem crescendo no Brasil: segundo o IBGE, subiu de 18,3% para 19%, de 2019 para 2021. Nos Estados Unidos, de acordo com um estudo do Pew Research Center para o mesmo período, aumentou de 37% para 44% a quantidade de pessoas de 18 a 49 anos que não querem procriar. Os motivos que levam à decisão são os mais diversos. “A perda da liberdade e da independência, a questão da aptidão: tudo isso pesa”, diz a cozinheira Paula Simões (42), parceira do analista de TI Thiago Cichini Simões (43) há 25 anos. Já as razões para as pessoas estarem assumindo tais escolhas estão em fatores como o avanço da luta feminina e a identificação com movimentos nas redes sociais.
Criada em 1900, a expressão childfree (do português, “livre de crianças”) passou a ser largamente utilizada com feministas, por volta de 1970, para designar mulheres que não se encaixavam no papel para o qual tinham sido incumbidas. Depois de 50 anos, na era das redes sociais, a campanha ganhou os algoritmos e são mais de 300 mil postagens com a #childfree. “Pessoas que compartilham dos mesmos ideais sentem que suas prioridades são legítimas. O questionamento sempre esteve ali, só que agora ele vem ganhando voz”, diz a psicóloga Monique Stony.
Tão rápido quanto o alastramento de uma ideia pode ser a sua distorção. “Eu posso ser uma pessoa adulta que decide passar pela vida sem ter filhos sem que isso signifique que eu tenha um preconceito com crianças”, diz Fe Lopes, psicóloga e psicanalista. Ela se refere ao fato de o childfree ter sido apropriado por aqueles que repelem o universo da infância e querem evitar o convívio infantil a todo custo, não só no mundo virtual mas em estabelecimentos comerciais livres de restrição etária. Em agosto passado, o bar e restaurante La Borratxeria Parrilla, em São Paulo, causou polêmica com atitudes que comparavam crianças a animais e que diziam que não eram bem-vindas. “Não ter filhos não têm absolutamente nada a ver com não gostar de criança”, confirma a publicitária Érica Affarez (39), companheira do programador Fábio Novais (39) desde 2005.
“Unidos dos ‘sem filho’
“É importante ter uma comunidade de pessoas sem filhos, porque, do mesmo jeito que só quem tem filho entende a parentalidade, tem coisa que só a gente que fez essa escolha compreende”, diz Heloisa Righetto (42), coordenadora de comunicação e conteúdo. Ela e o desenvolvedor de software Martin Descalzi (42) estão juntos desde 2003 e quando jovens os planos sobre bebês ainda eram uma possibilidade. Mas não foi difícil bater o martelo quando chegou a hora: “No fundo, estava na cara que nenhum dos dois queria, mas eu achava importante falar”, diz Heloisa. Para ela, a transparência é fundamental, mas o fato de as pessoas mudarem com o tempo não impede que uma vontade comum se transforme em discrepância. “É difícil prever essas situações quando a gente pensa em longo prazo, mas é possível ter um diálogo sobre esse assunto. Isso tem de estar claro nas conversas iniciais”, comenta Fe Lopes. “Uma coisa que parece pequena, e se deixa de lado em um momento da vida, a gente continua carregando. E às vezes ela pode crescer e resultar num afastamento do casal”, complementa Paula.
Érica e Fábio só foram tocar no assunto quando o primeiro casal amigo “abriu a fila”. “Foi um encontro de almas”, comemora ela. Hoje os dois até gostam de conversar sobre o tema, mas por um viés mais comportamental e filosófico. “Muitas das discussões que temos são para trazer pontos de vista sobre essas relações e como aquilo não funciona para a gente”, esclarece ele. Apesar de não irem a festas ou baladas, gostam de viagens e, principalmente, investir nas próprias carreiras: “Somos pessoas que dedicam bastante tempo ao trabalho. Tem as decisões sobre oportunidades que você pode aceitar ou não, dependendo do jeito como você se coloca no mercado”, diz. Para Érica, uma criança não combina com esse estilo de vida: “Não vejo muito propósito em ter um filho e ter que fazer escolhas difíceis, como não estar com ele”. Depois que o resto da turma engravidou, foram os dois que trataram de se adaptar às novas rotinas, ainda que isso signifique ter menos encontros com a galera do que antigamente.

Paula e Thiago trilharam um caminho diferente e, ainda que vivam cercados de sobrinhos e filhos de amigos, acabaram se afastando de alguns pela simples divergência de interesses. Hoje, dois dos casais com quem mais se relacionam também “saíram dessa caixinha”, como ela diz. À medida que as famílias ao redor foram se multiplicando, a certeza de que não era essa a realidade que queriam compactuar foi aumentando. “Depois de um tempo vendo meus amigos tendo filhos, percebi o quão complicado e difícil é. Acho que a parte boa de ter um filho não compensa todo esse trabalho e custo”, desabafa Thiago. A independência é o que mais motiva a cozinheira: “Para nós, é ‘vale night’ todo dia. A gente se reúne para jogar videogame, viaja quando quer, senta no sofá e não faz nada. É libertador”.
‘Na conta’ de quem?
“É uma diferença abismal. A exigência da justificativa sempre recai nela [Heloisa]. Se eu falo ‘não’, o assunto para por aí”, menciona Martin. “Quando uma mulher se posiciona dizendo que não quer ter filhos, ela choca as pessoas, que normalmente passam a buscar qual seu ‘problema’, por estar ‘indo contra a sua própria natureza’”, fala Monique. Inúmeras vezes, ela é colocada como se estivesse minando a paternidade do companheiro. “’Ai, mas e o Martin? Ele não fica chateado?’”, Heloisa relembra as indagações. A cobrança vem de todos os lados, mas a intromissão de desconhecidos era o que mais a incomodava: “A gente vai amadurecendo e ligando o ‘nem aí’. Comecei a falar sobre isso nas redes sociais no momento em que estava mais confortável com essas perguntas”.

A pressão tende a se esvair com o tempo, mas Fábio recorda que ela reaparece quando passam a integrar um novo círculo: “É sempre um reinício, de justificar por que não queremos. É muito mais difícil manter uma posição de não querer um filho do que a de ter, que é o padrão, apesar de ser uma decisão que muda a vida inteira”. O conservadorismo, muitas vezes, é o que dificulta a discussão. “Há um grupo de pessoas que enxerga esse tipo de posicionamento como uma ameaça aos valores que acreditam, e vão tentar interceder para mudar essa perspectiva ou barrar o seu avanço e disseminação”, acrescenta Monique.
Romper com o padrão imposto nunca é fácil e, somado a essa vontade particular de cada homem ou mulher de não ter filhos, está o anseio de ultrapassar a condição de toda uma geração nem sempre preparada para a parentalidade. “Essa geração nova tem o cuidado de não causar traumas nas posteriores, um desejo de acertar muito grande. A verdade é que a gente não sabe aonde vai dar nenhum projeto, mas é que ‘ter ou não filhos’ escancara isso”, confessa Fe Lopes.