O rastro de destruição deixado pela horda bolsonarista que vandalizou as sedes dos três Poderes da República no dia 8 de janeiro mirou na democracia. Mas como vândalos são vândalos, e sempre ignorantes, a cultura brasileira foi lamentavelmente ferida com a destruição de importantes obras de arte e de peças que integram o patrimônio histórico do País. Especialistas ainda fazem as contas para estimar o prejuízo. Já é possível, no entanto, dizer-se que alcança cifras milionárias. Apenas uma das obras danificadas, a tela As Mulatas, de Di Cavalcanti, é avaliada em R$ 8 milhões. O quadro, exposto do Palácio do Planalto, foi rasgado a facadas pelos extremistas.

Outro exemplo da sanha devastadora é a completa destruição da obra O Flautista, de Bruno Giorgi, cujo valor está aquilatado em R$ 250 mil. A escultura, em bronze, ficava no terceiro andar do Planalto, onde está localizado o gabinete presidencial. A depredação de obras Di Cavalcanti e Bruno Giorgi é emblemática: suas peças foram encomendadas pelo arquiteto Oscar Niemeyer, que projetou a cidade de Brasília — não que os agressores bolsonaristas, de tão incultos que são, saibam disso. Destruíram porque a destruição os nutre ideologicamente. Sobre a concepção de Brasília, dê-se voz a Denise Mattar, curadora de artes plásticas que já dirigiu o Museu de Arte Moderna de São Paulo e o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro: “Brasília foi construída dentro do conceito de síntese das artes, e Oscar Niemeyer incluiu no planejamento da cidade obras de importantes artistas brasileiros”.

“Foi o próprio Niemeyer que encomendou as obras do Di Cavalcanti, que era um artista que representava a brasilidade, cujo trabalho tem realmente como tema o povo brasileiro”, diz Denise. Sobre a importância de Bruno Giorgi, ela situa que é ele o autor de uma das mais emblemáticas esculturas da Capital Federal: Os Candangos, obra em bronze exposta na Praça dos Três Poderes, cujo nome original era Os Guerreiros. “É uma cidade repleta de arte, e essa era exatamente a proposta”, diz Denise. “Para se ter uma ideia da grandiosidade do projeto do arquiteto, ainda antes de ser inaugurada, Brasília sediou o Congresso Internacional de Críticos de Arte”.

Outra obra de grande importância artística vandalizada é Galhos e Sombras, de Frans Krajcberg. Feita com galhos de madeira, a escultura, estimada em R$ 300 mil e também exposta no Palácio do Planalto, foi quebrada em diversos pontos e teve seus pedaços arrancados e jogados longe. A escultura em bronze Bailarina, de Victor Brecheret, embora arrancada do seu pedestal, felizmente já está exibida na Câmara dos Deputados. Também foram danificados o Painel Vermelho e o Muro Escultório, do pintor e escultor Athos Bulcão, e tapeçaria do arquiteto e paisagista Roberto Burle Marx. Bulcão e Burle Marx estão entre os principais colaboradores dos projetos de Niemeyer – não só em Brasília, mas também em São Paulo e Rio de Janeiro.

AÇÃO FASCISTA I Quadros da galeria de ex-presidentes da República jogados no chão; O Flautista, de Bruno Giorgi: escultura foi completamente destruída; retratos danificados de ex-presidentes do Senado, como Renan Calheiros, e relógio do século XVIII que pertenceu a Dom João VI

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AÇÃO FASCISTA II José Bonifácio de Andrada e Silva, Patriarca da Independência: retrato ultrajado; Galhos e Sombras, de Frans Krajcberg: fraturas em diversas partes e pedaços arrancados; tela As Mulatas, de Di Cavalcanti: rasgos a faca

História no lixo

Quanto aos danos ao patrimônio histórico houve depredações e até mesmo roubos. Relógio doado a Dom João VI, pela Corte de Luís XIV, da França, teve ponteiros e números arrancados, bem como uma pequena estátua que enfeitava o topo da peça. Foi fabricado pelo joalheiro francês Balthazar Marinot e existem apenas dois exemplares no mundo — o outro está no Palácio de Versalhes, na França. No STF foram danificados os bustos de Rui Barbosa e Joaquim Nabuco. Já entre os itens roubados estão alguns presentes oficiais de chefes de Estado e uma réplica do documento original da Constituição.

As pessoas que atacaram a Praça dos Três Poderes não deixam nada a desejar ao obscurantismo do Talibã, o grupo muçulmano extremista que horrorizou o mundo com a destruição de objetos de valor cultural e histórico no Afeganistão. “Ambas são situações que envolvem intolerância”, diz a curadora Denise. “Mas os talibãs agiram por uma questão religiosa, e aqui a questão é política. Manifestações públicas, eu até posso compreender; mas não entendo essa fúria contra obras de arte”.