Não foram 10, 20 ou 30 mil peças de valor inestimável. Nos escombros do pior incêndio para a cultura brasileira foram perdidos 90% dos 20 milhões de itens que compunham o acervo do maior museu de história natural e antropológica da América Latina. As coleções perdidas foram acrescentadas ao longo de 200 anos e serviram para rigorosas pesquisas em um país pouco afeito à ciência. Aos leigos, o dano mais visível está no próprio prédio, que abrigou a família real e foi palco de momentos fundamentais da nossa história. Fundado em 1818, por Dom João VI, foi casa da Imperatriz Leopoldina, que ali assinou o Decreto da Independência do Brasil. Nas salas onde hoje só restam cinzas ocorreram sessões da primeira Assembleia Constituinte Republicana, entre 1889 a 1891. No ano seguinte, o palácio virou o museu que existiu até domingo 30.

Idade da pedra

Entre as atrações que mais fascinavam o público estava a coleção egípcia mais importante da América Latina. Iniciada por Dom Pedro I, contava com 700 peças consideradas raras até mesmo no Egito. Uma das estrelas era a múmia da sacerdotisa-cantora Sha-Amum-Em-Su, uma das únicas do mundo conservada dentro de seu sarcófago, um artigo da 23ª dinastia do Antigo Egito, com cerca de 3 mil anos. Junto estavam a Múmia Feminina, rara por causa dos membros enfaixados separadamente, e o guardião do harém real Hori, que já havia sobrevivido aos danos de uma inundação ocorrida no museu em 1997. A coleção de arte greco-romana da Imperatriz Teresa Cristina também reunia cerca de 700 obras, datadas entre os século 7 a.C. e 3 d.C. Destaque para a Escultura Feminina Sem Cabeça, peça romana de mármore branco e rosado.

Para os estudiosos da pré-história, o item principal era o crânio de Luzia, fóssil de Homo sapiens do sexo feminino de 12 mil anos. Considerada pertencente à primeira brasileira, a ossada foi encontrada em 1974, em Lagoa Santa, Minas Gerais, e mudou as teorias sobre o povoamento das Américas. Caso seu desaparecimento seja confirmado, será uma das piores perdas. Preocupa a possibilidade de não terem sido coletadas amostras suficientes de DNA de Luzia, assim como de outros esqueletos pré-históricos ali armazenados.

Construído em madeira, o trono de Daomé é dado como perdido. De caráter sagrado e pertencente ao soberano Adandozan de Daomé (1718-1818), era o único do gênero em todo o mundo que não estava no Museu Histórico de Abomé, em Benim, na África. Não é certo o motivo que fez o item ser enviado ao Brasil, mas uma das possibilidades é que tenha sido um presente para Dom João VI. Nem mesmo a coleção de dinossauros e mastodontes brasileiros pode ter escapado. Entre os animais destacavam-se o Maxakalisaurus topai, o maior já montado no Brasil. O réptil viveu em Minas Gerais há 80 milhões de anos. Próximo ficava o Unaysaurus tolentinoi, herbívoro que viveu no Período Triássico, há 220 milhões de anos.

Peças podem ter sobrevivido intactas ao colapso de parte prédio. Rochas, fósseis e minerais suportam fogo intenso

Felizmente, fósseis de mamíferos da Era do Gelo, como mastodontes, tigres-dentes-de-sabre e preguiças gigantes podem ter escapado. “Temos esperança que muita coisa sobreviveu ao incêndio, porque houve um colapso, e isso preserva as peças”, disse Alexander Kellner, diretor do museu. Entre o que pode ter sobrado estão minerais, rochas, fósseis e meteoritos, como o Bendegó, que ficava em destaque no saguão do prédio. Com mais de cinco toneladas de ferro, o fragmento é o maior já encontrado no Brasil. Desenterrado em 1784 no sertão da Bahia, estava no museu desde 1888. Agora, a equipe do museu aguarda o escoramento do prédio para remover o entulho e resgatar o que for possível. “Falaram que vão contratar uma empresa para recompor o acervo, mas não queremos. Somos nós os maiores técnicos do museu”, diz Kellner.