Quem achava que o público já estava cansado de ouvir falar sobre o príncipe Harry e suas mágoas reais errou profundamente. O lançamento mundial da autobiografia O que Sobra, em 10 de janeiro, bateu recordes: em apenas um dia, foram vendidas mais de 1,4 milhão de cópias – 400 mil somente na Grã-Bretanha. Para alguém que criticava a mídia pela exposição da sua vida pessoal, a obra de Harry traz uma quantidade impressionante de informações íntimas. Em entrevistas para promover o lançamento, o príncipe alega que decidiu escancarar suas memórias com o objetivo de retomar o controle sobre a sua versão da história, não aquela que o público conhece por meio da imprensa britânica.

“A maioria dos soldados não sabe dizer exatamente quantas mortes têm nas costas. Eu sempre soube quantos combatentes inimigos tinha matado. Meu número: 25. Não é um número que me dê satisfação. Mas tampouco me causa vergonha. Naturalmente, preferia não ter esse número no meu currículo militar e na minha cabeça, mas seguindo essa linha de pensamento, eu preferiria viver em um mundo em que não existisse Talibã, um mundo sem guerra. Em meio ao nevoeiro e ao calor do combate, não via esses 25 como pessoas. Não dá para matar pessoas se as enxergarmos como pessoas. Eram peças de xadrez retiradas do tabuleiro. Maus eliminados antes que pudessem matar os Bons. Tinha sido treinado para transformá-los em ‘outros’, e bem treinado. Reconhecia que esse distanciamento era problemático, mas também o via como parte inevitável do serviço militar.”

A grande vilã, portanto, não seria a família real, mas a indústria de tabloides, que, segundo o autor, inventa mentiras e comete crimes para descobrir segredos que impulsionem as vendas. As revelações de Harry respingam em seus familiares, a quem ele acusa de compactuarem com o sistema para obter ganhos pessoais. A rainha Camilla, por exemplo, teria vazado dados para melhorar sua imagem junto aos súditos. Harry denuncia ainda a guerra declarada entre os secretários de imprensa de cada membro da realeza. Ao trabalharem com independência, esses profissionais liberam notícias de forma seletiva aos tabloides, para melhorar a imagem de seus protegidos, mesmo às custas dos outros. Como caçula de Charles, é fácil compreender que o poder de Harry nessa questão sempre foi menor que o dos outros – é o cerne de suas críticas.

SUCESSO Interesse público: autobiografia vendeu mais de 1,4 milhão de cópias em um único dia (Crédito:JUSTIN TALLIS)

Escrito em uma linguagem simples e com um tom quase adolescente, o livro traz passagens emocionantes, como os trechos que lembram da morte da mãe, a princesa Diana, em um acidente de carro em Paris. Já o modo com que trata o pai, o hoje Rei Charles, é ambíguo: apesar de dedicar a ele adjetivos de carinho e amor, o que se lê nas entrelinhas é uma constatação de sua frieza. Ao contar ao filho que a mãe tinha sido levada para o hospital, Charles teria apresentado uma objetividade polar.

“Mamãe foi ferida na cabeça. Eles tentaram de tudo, menino querido. Lamento dizer que ela não aguentou”, diz ele. O comentário de Harry é irônico: “Papai não me abraçou. Não era bom em demonstrar emoção em circunstâncias normais, como esperar que demonstrasse numa crise como aquela?”. Em relação a William – Willy, como ele o chama –, Harry mantém uma postura de caçula desprezado pelo primogênito. Além da já famosa cena da briga – William jogou Harry no chão após uma discussão sobre a mulher dele, Meghan Markle –, o que se vê é uma escancarada falta de intimidade. Após passarem uma temporada juntos em Lesoto, na África, Harry só fica sabendo que William havia pedido Kate Middleton em casamento quando ambos voltam a Londres – pela imprensa. “Por que ele não falou nada para mim?”, reclama. Alguns trechos são chocantes, como aqueles em que o príncipe fala sobre seu consumo de drogas, maconha, alucinógenos e cocaína. Outros chamam a atenção pelo excesso de intimidade, como as páginas e páginas sobre o congelamento de seu pênis em uma viagem ao Poló Norte.

Há ainda fofocas bobas sobre o futuro rei: ele tem medo de ficar careca e brigou com Harry porque ele deixou a barba crescer, algo que, a William, não foi permitido.

GUERRA Afeganistão: Harry atuou como piloto de helicóptero entre 2012 e 2013 (Crédito:Divulgação)

Mortes no Afeganistão

O excesso de sinceridade, porém, trouxe problemas mais sérios. A descrição em detalhes de operações militares britânicas no Afeganistão é alvo de críticas por parte de veteranos de guerra. No livro, Harry confessa ter matado 25 soldados inimigos e diz “que não os via como pessoas, mas como peças de xadrez retiradas do tabuleiro”. O líder talibã Annas Haqqani respondeu: “Senhor Harry, aqueles que você matou não eram peças de xadrez, eram humanos. Tinham famílias que esperavam pelo seu regresso”. Khalid Zadran, da polícia de Cabul, fez ameaças: “O príncipe será sempre lembrado. Os afegãos nunca esquecerão a morte dos seus compatriotas inocentes. Criminosos como Harry, que orgulhosamente confessam seus crimes, serão levados ao tribunal internacional”. Vieram críticas até de militares britânicos, como o coronel Richard Kemp: “A declaração poderá voltar a incitar as pessoas que desejam o seu mal. Vamos torcer para que não tenham sucesso, mas isso não deixa de ser um problema”. O livro de Harry mirou os tabloides, mas acertou um alvo muito maior.