10/03/2023 - 9:30
Para conhecer as origens do português coloquial e a evolução da cultura por meio da língua, pesquisadores do Laboratório de Lexicografia da Faculdade de Letras, da Unesp de Araraquara, produziram o Dicionário Histórico do Português do Brasil (DHPB). Ele nasceu a partir de pesquisas em bibliotecas, museus e arquivos do Brasil e de Portugal. Com 10.470 verbetes, o acervo digital e gratuito ainda traz informações como datas e contextos em que os termos surgiram, entre os séculos XVI e XVIII. Acostumado a referenciar o uso da palavra ao longo da história, o Grande Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa utilizará esse novo banco de dados e suas edições futuras vão incorporar dados de mais de 700 vocábulos presentes no DHPB.
“Eu chamo de dicionário documental porque todas as definições partiram de textos”, diz Clotilde de Almeida Azevedo Murakawa, coordenadora e coautora do DHPB. Ela assumiu o projeto idealizado pela professora Maria Tereza Biderman, que faleceu em 2008. A coleta de informações começa na carta de Pero Vaz de Caminha e vai até escritos de 1808: “O objetivo era reunir um repositório lexical do Período Colonial, que é muito rico do ponto de vista linguístico. Ele servirá para quem for trabalhar com uma perspectiva histórica e cultural do idioma”. Para Mayara Almeida, doutora em Linguística e Língua Portuguesa, o DHPB já foi útil para sua tese sobre o vocabulário da escravidão. Esse material também vai abastecer as novas edições do Houaiss. A falta de estudos sobre a influência da escravidão na perspectiva da língua era uma lacuna que começa a ser melhor compreendida. “É importante estudar o tema para não deixar que as pessoas esqueçam esse passado”. Por meio do novo estudo, é possível constatar como termos do período surgiram intimamente ligados à inferiorização dos negros escravizados. “O léxico é a testemunha da cultura”, afirma Clotilde.
Mauro de Salles Villar, diretor do Instituto Antônio Houaiss e coautor do Grande Dicionário, elogia a datação do material, que organiza a evolução dos termos: “As palavras vão se descascando e você percebe o trajeto até chegarem aos sentidos de hoje em dia.” Ele cita outros usos para esse tipo de pesquisa: “Se um autor de novelas está escrevendo uma obra e deseja usar determinada palavra, ele precisa saber se na época em que a produção se passa aquele termo era usado”. Villar reconhece a complexidade das pesquisas, uma vez que criar a estrutura para um dicionário exige a leitura de cerca de dois mil livros, ainda mais quando se fala de dicionários como o Houaiss. E vê com bons olhos a aplicação dos dados: “Esse material vai alimentar mecanismos de inteligência artificial e certamente vai fazer o meu trabalho melhor do que eu faço.” O estudo da língua, como se vê, mantém um olho no passado, outro no futuro.
CONTEXTO CULTURAL
ESCRAVIDÃO
Documentos e obras literárias revelam a animalização e a condição jurídica dos negros na Colônia
MULATO (der. mula)
Surge em anúncios de compra e venda, além de notícias de morte, fuga e alforria de escravos
CABRA (der. cabra)
Apesar de significar “pessoa”, refere-se a negros escravizados, não a homens livres
PARDO (der. pardal)
Aparece associado a adjetivos em expressões como pardo-livre, pardo-liberto, pardo-alforriado