Leitores do mundo inteiro estão acostumados a pensar em José Saramago como o grande nome da literatura mundial, o único escritor agraciado com o prêmio Nobel em língua portuguesa até hoje. Devido ao seu ruidoso processo de autoexílio na ilha de Lanzarote, na Espanha, também costumam lembrar-se dele como o companheiro inseparável de Pilar del Río, jornalista com quem ficou casado entre 1988 e 2010, quando morreu. Até hoje, no entanto, pouco se sabia sobre o José de Sousa, o homem, pai de Violante Saramago, de 75 anos, sua filha única e fruto do primeiro casamento com a artista plástica Ilda Reis.

Como era sua presença em casa, o que ensinara à filha? O que conversava à mesa durante o jantar? Que lição de vida deixou esse ser de fisionomia séria, sisuda, cujos personagens pareciam carregar todo o peso do mundo sobre os ombros?

Bióloga, escritora e ativista, Violante vem ao Brasil para a homenagem aos 100 anos de nascimento do escritor, que seriam completados em 16 de novembro. Em comemoração à data, a pequena aldeia de Azinhaga, em Portugal, sua cidade natal, receberá o plantio de cem oliveiras, árvore favorita do escritor. Em cada uma delas será instalado um azulejo, produto típico da região, pintado com o nome de um personagem de seus livros.

No Brasil, país que Saramago amava e que tanto visitou, haverá celebração semelhante, porém mais contida: uma única oliveira, adornada com um único azulejo, será plantada na Fundação Oscar Americano, em São Paulo, em 22 de outubro. A cerimônia aberta ao público contará com a presença de Violante, que compartilhará experiências descritas no livro De Memórias nos Fazemos, sobre sua relação com o pai.

Ela cedeu fotos de seu arquivo pessoal para outra publicação, o livro Saramagos – 100 Anos de José, organizado por Érico Vital Brazil e Liana Leão. A publicação traz textos sobre a obra do português assinados por artistas brasileiros, entre eles Fernando Meirelles, Fernanda Montenegro, Maria Adelaide Amaral e José Possi Neto. O evento terá ainda a participação do português José Luis Peixoto, autor de Autobiografia, ficção sobre um escritor que recebe a missão de publicar uma biografia de Saramago – romance que conta com o próprio Nobel como personagem.

Dimensão universal

Para Peixoto, a importância do escritor vai além da literatura e do próprio Nobel que ele recebeu. “Como autor crítico, foi um filósofo que mostrou que nossa língua pode ser universal”, afirma. Ele cita ainda a dimensão filosófica de seus textos, cuja pertinência está sempre se renovando: “Basta ver que, durante a pandemia, diversos livros dele foram citados como parábolas proféticas.” Peixoto afirma que levou a ideia de ter o autor como personagem à Pilar Del Río, em busca de sua aprovação. “Se ela tivesse dito não, eu teria desistido. Mas Pilar me incentivou a continuar.” Peixoto vem ao Brasil como representante da cultura portuguesa, mas, antes de tudo, como discípulo: “Saramago é mais que sua obra, é sua presença e seu pensamento”.

Entrevista

“Quem escreve se expõe na escrita” Violante Saramago, escritora

Por que decidiu escrever De Memórias nos Fazemos em homenagem ao seu pai?
Não se comemora um centenário todos os dias, nem todos são filhas de um prêmio Nobel. Meu pai teve uma vida pública ao se tornar escritor profissional, por volta de 1976, mas antes era apenas um indivíduo. Seu trajeto é especial e não era conhecido.

Como era a vida familiar antes de alcançar a fama como escritor?
Meu pai nasceu em uma casa térrea, numa aldeia, em uma família muito pobre. A probabilidade de chegar onde chegou era inferior a zero. Sou filha de um serralheiro e de uma datilógrafa. Aos poucos, quando passo a frequentar a casa de amigos, vejo que o ambiente em minha casa era único. A forma de educar era diferente, a conversa à mesa era outra.

Como era Saramago como pai?
Nunca tomei uma bronca, um sopapo, nunca, mas ele também nunca me deu uma boneca. Tinha uma certa forma de dizer as coisas, uma palavra ou um silêncio que significava muito e me fazia pensar.

A impressão que temos é que ele era um homem muito sério.
Sim, acreditava que não tinha muitos motivos para sorrir. Preocupava-se com as dores do mundo. Essa seriedade também significava a contenção de emoções. Comunicava-se com os gestos das mãos, com o olhar. Tinha uma ironia fina, sutil.

Reconhece seu pai em algum personagem de seus livros?
Não creio que seus livros sejam autobiográficos, mas quem escreve se expõe na escrita. Acredito que José, de Todos os Nomes, tem a ver com ele. Os olhos azuis da personagem de Levantado do Chão são iguais aos da minha bisavó. Os cães de seus livros também têm grande caráter, como ele. De certa maneira, era o que meu pai gostaria que a humanidade fosse. Era uma maneira de se pôr no livro, sem se pôr.

E a senhora, se reconhece?
Sim, Marta, de A Caverna. É filha de uma pintora e tem uma relação com o pai, Cipriano, que era igual a nossa. Disso isso a ele, que concordou.

Cotidiano em Lanzarote

A Intuição da Ilha Pilar del Río Companhia das Letras Preço: R$ 93 (Crédito:Divulgação)

Violante fez um relato do pai no início da carreira. Já a jornalista Pilar del Río, sua companheira desde 1988, optou por descrever o dia a dia após sua consagração como escritor. No livro A Intuição da Ilha – Os Dias de José Saramago em Lanzarote, ela compartilha momentos íntimos do casal, com recepções a amigos como Sebastião Salgado e Mário Soares, ex-presidente de Portugal. Também revela o contexto em que o autor produziu seus grandes clássicos, entre eles Ensaio Sobre a Cegueira e Caim.