Sou um menino que vê o amor pelo buraco da fechadura. Ninguém poderia definir Nelson Rodrigues melhor do que ele mesmo. O escritor, jornalista, dramaturgo e torcedor fanático do Fluminense viveu 68 anos, mas sua vida foi extremamente intensa. Além de peças, romances, crônicas e reportagens inesquecíveis, cunhou frases que ainda servem para desvendar com precisão cirúrgica o espírito do brasileiro – mais de quarenta anos depois de sua morte.
O autor, que nunca esteve em baixa, está novamente em alta. O romance “Asfalto Selvagem” inaugura a série de relançamentos promovidos pela editora HarperCollins, que publicará os dez livros produzidos inicialmente para o formato de folhetim, ou seja, em capítulos publicados em periódicos cariocas como “O Jornal” e “Última Hora”, entre 1940 e 1960. Em meio a essas obras, há aquelas que Nelson assinou com pseudônimos, com o objetivo de manter a aura de “autor sério” que só escrevia para o teatro. Depois de tanto falar sobre mulheres, resolveu se passar por uma: pegou o nome de uma prima, um sobrenome americano e publicou “Meu Destino é Pecar”, como Suzana Flag. Na autobiografia da personagem, definiu como se imaginava em sua versão feminina: “os homens me acham bonita e se viram, na rua, quando passo.” Divertia-se com as cartas que Suzana Flag recebia de admiradores – até um presidiário entrou na lista de seus pretendentes. Mais tarde, Suzana deu lugar a Myrna, especialista que respondia a dúvidas dos leitores em primeira pessoa. A lista de relançamentos inclui também “O Casamento”, único que ele escreveu para o formato de livro por encomenda de Carlos Lacerda – e que foi censurado pela ditadura militar em 1966.

ENGRAÇADINHA Alessandra Negrini na adaptação para a TV: sensualidade e tragédia (Crédito:Divulgação)

“Asfalto Selvagem” saiu em 112 capítulos e apresentou ao País a sensual Engraçadinha, uma das personagens mais marcantes da literatura brasileira. A história foi adaptada pela TV Globo na minissérie homônima em 1995, e teve no elenco a atriz Alessandra Negrini, na primeira fase da personagem, dos 12 aos 18 anos, e Claudia Raia na vida adulta. A parte inicial traz Engraçadinha ficando noiva por conveniência de Zózimo, mas tendo um caso com seu primo Silvio, que, por sua vez, é casado com sua prima – e melhor amiga – Letícia. Na sequência da história, a personagem torna-se uma mulher religiosa e tenta colocar limites a Silene, sua filha, que se parece com ela própria na juventude.

Para a jornalista Sônia Rodrigues, filha do autor, Nelson conseguiu traduzir o Brasil real em palavras. “Ele trouxe o subúrbio, a classe média pobre, as questões raciais e familiares para a literatura e o teatro ao contar histórias e paixões sem tomar partido ou julgar”, diz Sônia. Ela acredita que mesmo o ato de misturar personagens reais e fictícios, como o pai fazia, é bem diferente do que acontece hoje. “Ele colocou o cotidiano na literatura. Fake news é criar uma realidade paralela para iludir os incautos e tirar proveito da ingenuidade ou ignorância dos outros.” Apesar de toda a polêmica envolvendo sua obra, Sônia acredita que ele não seria “cancelado”, nas redes sociais. “Nelson é compreendido pelas novas gerações porque nunca fugiu de questões difíceis, mas talvez fosse cancelado por alguns”, admite. Na relação pessoal, descreve o pai de uma maneira bem diferente do que a percepção popular imagina: “Era um homem muito corajoso e sábio, por um lado, e muito frágil e medroso por outro. Uma mistura muito humana, eu diria.” Como tudo na vida de Nelson, sua fama de transgressor parece um exagero tirado de seus folhetins desde a infância. Aos oito anos, em um concurso da escola, escreveu uma redação sobre a história do marido que, ao chegar em casa e ver outro homem fugindo pela janela, matava a mulher a facadas. A professora ficou desesperada. Ganhou o concurso e descobriu que chocar as pessoas não era proibido, mas divertido, e ainda fazia as pessoas prestarem atenção nele. Nunca mais parou.

Transgressor

Em 1941, escreveu a primeira peça, “Mulher sem pecado”. A história era fora dos padrões: uma mulher, maltratada pelo marido ciumento, fugia com o motorista. “Vestido de Noiva”, repleta de flashbacks e alegorias metafóricas, tornou-se um marco do modernismo nacional e deu à luz o adjetivo “rodrigueano”, sinônimo de comportamentos inadequados para a moral da família tradicional. Na coluna de jornal “A Vida como ela é”, seus personagens misturavam figuras reais e fictícias, tornando-o um biógrafo informal do Rio de Janeiro – apesar de ter nascido em Recife. Os cariocas de suas tramas pareciam pessoas normais, mas escondiam algo torto que os tornava escravos de seus desejos. Não havia moral nem bons costumes capazes de domar os instintos e vontades que transbordavam de seus corpos cheios de libido. A mulher no ônibus virava uma “dama do lotação”, a inocente sobrinha do interior virava “garota de vida fácil”. A vida sempre terminava exatamente onde começa: na cama. Sexo, traição e morte formavam a tríade sob a qual Nelson literalmente deitou e rolou.

Sabia como ninguém usar a polêmica para divulgar a própria obra, mas hoje, sem dúvida, enfrentaria resistência pesada. “Toda mulher gosta de apanhar” disse, certa vez, em uma de suas frases mais famosas – e criticadas. Depois complementou, para piorar: “todas, não, só as normais”. Na lista das dez coisas de que mais gostava, em entrevista da época, cravou em sétimo: “Mulher bonita e burra”. Uma obra tão intensa levou Nelson Rodrigues a ser tanto amado quanto odiado. Era amado pelos leitores fiéis, mas odiado pelo governo, que o censurava, embora politicamente ele tenha sido um reacionário – pelos conservadores, que consideravam suas histórias uma ‘sem-vergonhice típica dos canalhas’; e por homens e mulheres que odiavam ver o próprio subconsciente exposto em praça pública, em teatros e jornais cariocas.

“A unanimidade é burra”, costumava dizer, mas essa foi uma das únicas vezes em que errou. Nelson Rodrigues foi, com inteligente unanimidade, um revelador da alma brasileira.

Lançamentos

“Asfalto Selvagem” Engraçadinha, Seus Amores e Pecados
Harper Collins
Preço: R$ 59

“Só os Profetas Enxergam o Óbvio”
Nova Fronteira
Preço: R$ 25