Em meio a uma onda de greves, os britânicos divididos entre “comer ou pagar a luz” ganharam uma nova primeira-ministra na segunda-feira, a terceira mulher na história a ocupar o cargo: Liz Truss, que anunciou seus ministros e se disse confiante para “enfrentar a tempestade”. De mais imediato, precisa apagar o fogo que literalmente consome contas de luz queimadas por italianos e pode desembocar nos protestos do Reino Unido, onde tiveram um aumento de 80%. Com isso, a “camaleoa” – que era defensora da União Europeia e convenientemente passou a apoiar o Brexit como deputada do Partido Conservador – adapta seu discurso de campanha à realidade, para acalmar os súditos da Coroa.

A nova premiê é mestra em contornar críticas. Fala de um “plano ousado de fazer a economia crescer por meio do corte de impostos”, uma estratégia que apenas beneficia os mais ricos, no entender de seus opositores, que defendem ajuda financeira direta e imediata à população para combater a alta do custo de vida. A inflação, de 10,1% em julho, é a maior em 40 anos.
Para se contrapor à insatisfação popular e levar esperança à população, a premiê retomou o tom desenvolvimentista, afirmando que “é hora de resolver problemas que estão travando o Reino Unido”. Fez uma lista de “bons empregos, construção de estradas, hospitais e escolas, extensão de infraestrutura para a banda larga de telefonia, segurança nas ruas” e anunciou a baixa no preço de combustíveis adoçada com a “reforma profunda” no NHS (Serviço Nacional de Saúde).

PreviousNext

“Estou confiante de que juntos podemos superar a tempestade e reconstruir nossa economia” Liz Truss, em discurso como primeira-ministra

Para Roberto Goulart Menezes, professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília, a primeira-ministra “não mostra densidade, apenas bandeiras mais gerais” nas áreas da Educação, Justiça e Meio Ambiente, como fez ao longo da última década, mesmo como ministra das Relações Exteriores. Por isso, deve manter a agenda do seu antecessor Boris Johnson, a quem segue defendendo. “Liz Truss tende a seguir o caminho do Donald Trump nos EUA e se tornar um híbrido de Trump mais Johnson”, afirma Menezes. Ela promete recompor as finanças públicas com a revisão de impostos, além de optar pela “austeridade” com corte nos direitos sociais, o que pode aprofundar a crise, segundo o especialista. “E agora, ao abraçar a reverência a Margareth Thatcher – de quem os opositores ainda dizem que Liz ‘não chega nem perto’ –, ela ainda se mostra deslocada no tempo, com o próprio Reino Unido já deslocado da Europa.”

A lista de problemas a resolver é imensa e no topo está a alta do custo de vida, em boa parte devida à alta no preço da energia e dos alimentos e ao montante (bem) gasto na pandemia. Há greves nos serviços de transporte, de motoristas de caminhão, carteiros e lixeiros, que levam a quebras na cadeia de produção. Pequenas empresas fecham e há um freio no crescimento da economia.

A premiê assumiu o cargo em uma sinuca de bico. Precisa retomar o crescimento econômico em meio a uma situação de crise, segue com um discurso otimista, mas “quando fala em diminuir tributos de empresas e privatizar mais, como se fosse um Donald Trump na pré-pandemia, dá um tiro no pé”, alerta Menezes.

O fantasma da recessão, prevista pelo Banco da Inglaterra para o fim do ano, assombra, aliado à baixa do PIB no segundo trimestre e à maior queda da libra esterlina em relação ao dólar desde 1985. Os britânicos gritam contra o desmonte do serviço social, de escolas e universidades públicas, a demora nos atendimentos do serviço de saúde e a alta generalizada nas contas, principalmente da energia e dos alimentos.

“Aguardo com expectativa uma relação construtiva, no pleno respeito dos nossos acordos”
Ursula Von der Leyen, presidente da Comissão Europeia

O problema não é apenas acalmar a população. Liz Truss não conta com a confiança dos próprios membros do Partido Conservador, mesmo tendo sido eleita por eles. Seus correligionários sinalizam que ela deve mostrar serviço, sob risco de também ser posta para fora do cargo em alguns meses, a exemplo de Johnson. Internacionalmente, a premiê continua mostrando desprezo pela União Europeia, o que afeta desde serviços básicos pela falta de mão-de-obra externa (principalmente do Leste Europeu) até a economia como um todo. A antiga crítica do Brexit (convertida em defensora radical) está no comando de um país que luta para reverter o declínio econômico e a falta de perspectivas depois da saída do bloco europeu.

A própria unidade da nação está em jogo, com a insatisfação na Irlanda do Norte e o movimento separatista na Escócia. A economia do Reino Unido acaba de ser superada pela da Índia. Por todas as dificuldades que tem pela frente, não são poucos os analistas que prevêem “vida curta” para Liz Truss no cargo que acaba de assumir.

“[Liz Truss] se mostra deslocada no tempo, quando o próprio Reino Unido já está deslocado da Europa” Roberto Goulart Menezes, professor de Relações Internacionais da UNB

Terceira mulher no comando do reino unido
A premiê tomou posse na Escócia e montou um gabinete que se destaca pela diversidade

Aos 47 anos, Elizabeth Mary Truss recebeu o “sim” da rainha Elizabeth II em cerimônia que, em 70 anos de reinado, pela primeira vez não ocorreu no Palácio de Buckinham. Aos 96 anos, com saúde frágil e problemas de mobilidade, a monarca recebeu Truss no Castelo de Balmoral, na Escócia, para o ritual em que solicita a cada primeiro-ministro que instaure “uma nova administração”, ao passar o poder. Isso, após Boris Johnson renunciar formalmente, diante da rainha.

Já em posse do cargo, a nova chefe de governo anunciou seu gabinete, com uma equipe de ministros diversa em gênero e etnia, supostamente coesa em levar adiante as propostas para enfrentar a crise em que os britânicos se debatem. Kwasi Quarting é a primeira negra no comando do Tesouro do Reino Unido, e Teresa Coffey, a primeira vice-primeira-ministra. Outros destaques são James Cleverly, ministro de Estado, e Suella Braverman, ministra do Interior.