03/03/2023 - 9:30
Em 2014, no primeiro mandato de Dilma Rousseff, o Brasil saiu do Mapa da Fome das Nações Unidas (ONU), graças aos avanços nos marcos legal e institucional sobre alimentação e nutrição e também aos programas sociais implantados nos oito anos de mandato de Lula e que tiveram continuidade com Dilma. A partir de 2019, com o desmonte de programas e políticas sociais promovido na gestão Jair Bolsonaro, agravado pela crise econômica e a pandemia de Covid, o País voltou ao Mapa da Fome. Isso ocorre quando mais de 2,5% da população de um país enfrentam falta crônica de alimentos. Os dados alarmantes de um estudo divulgado pela Sociedade Brasileira de Pediatria servem de aviso para todos os brasileiros. De janeiro de 2012 a novembro de 2022, foram registradas quase 400 mil hospitalizações de crianças motivadas pela desnutrição, somente na rede pública. Em torno de 30 mil foram de crianças menores de 1 ano, e outros 15 mil casos envolveram crianças entre 1 e 4 anos. A proporção de crianças menores de 5 anos internadas mais do que dobrou em relação ao total de casos de desnutrição. Em 2012 eram 8%, e alcançaram 18% em 2022.

A desnutrição hoje é caracterizada por um processo inflamatório crônico. Um grande problema da desnutrição é o déficit imunológico, que reduz a capacidade de defesa do corpo e aumenta os riscos de infecções. “Não podemos achar que dar comida calórica em uma alta quantidade vai recuperar essas crianças de uma forma rápida. O processo de recuperação é longo e a Organização Mundial de Saúde tem um manual de recomendação de recuperação nutricional da criança em um estado grave”, alerta Daniela Gomes, médica nutróloga do Hospital Albert Sabin (HAS). Muito da desnutrição vem de alimentos ultraprocessados, que têm um valor de mercado cada vez mais baixo, da redução de uma cultura de subsistência em que o alimento da terra era extremamente rico e é substituído por alimentos extremamente pobres. São as chamadas “calorias vazias”, como bolachas e salgadinhos, com déficit vitamínico gigantesco e que levam ao déficit proteico.
“Nada é feito”
“Os números assustam e todos nós somos responsáveis. Há uma somatória de fatores: crise econômica, pandemia, piora da renda familiar. Todos, em maior ou menor grau, participam desse quadro. Esse processo não ocorre de um momento para outro. Há um descaso em andamento e nada é feito”, diz o pediatra Aureliano Augusto Cardoso Gomes Mendes. Persistindo esse quadro, o legado ao futuro será uma população aquém de todo o potencial intelectual e motriz de que seria capaz. A desnutrição atrapalha o desenvolvimento de habilidades como atenção, memória, leitura e aprendizagem de linguagem, e a criança que tem dificuldade mostra maiores chances de ir mal na escola ou de abandonar os estudos. “É fundamental melhorar o saneamento básico, causa de incidência repetida de infecções intestinais, que são agentes de desnutrição na infância. Como podemos no século XXI aceitar um País sem esgoto nem acesso a água potável em mais da metade do território?”, indaga a médica endocrinologista Isabelle Monique Dossa.
“O Brasil nunca teve estoques tão baixos de alimentos regulados pelo governo para distribuir e garantir a segurança alimentar” Gonzalo Vecina Neto, médico sanitarista e um dos idealizadores do SUS
A desestruturação de órgãos do governo é incontestável. A extinção do Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional), em 2019, e também do Sisan (Sistema de Segurança Alimentar e Nutricional) tiveram repercussões dramáticas no cenário da alimentação brasileira. No mesmo ano foi extinto o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. O Ministério do Desenvolvimento Agrário, especializado na criação da pequena e média agricultura familiar, tinha sido extinto em 2016, e houve uma diminuição de recursos repassados para o Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar), e dos recursos movimentados pela Companhia Nacional de Abastecimento.
Os especialistas apontam também a importância de se falar do sobrepeso que a desnutrição traz. Desnutrição não é só magreza. Muitas crianças acima do peso para sua idade são também desnutridas, uma vez que a alimentação é rica em açúcar e gorduras e pobre em nutrientes fundamentais para o organismo. Essa desnutrição por excesso de alimentos inadequados é o que se chama de “fome oculta”, que pode afetar indivíduos e famílias que foram obrigadas a mudar a alimentação por falta de dinheiro. Os alimentos que os especialistas chamam de saudáveis, como frutas, verduras, legumes, arroz, feijão e carne foram impactados pela inflação muito mais do que os alimentos industrializados, como bolachas, sucos e macarrão instantâneo. A médica se mostra indignada. “Veja só como isso é desafiador para nossa geração. Não só não tenho acesso ao alimento, mas quando tenho acesso é ao produto de pior qualidade, rico em gordura, rico em sal, rico em açúcar e pobre em nutrientes adequados”, explica a presidente do departamento de nutrologia da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), Fabíola Suano de Souza.
Outro ponto que tem chamado atenção e contribuído para o elevado número de crianças em desnutrição é má qualidade da merenda escolar. Crianças em situação de vulnerabilidade muitas vezes têm na escola a oportunidade de passar o dia, comer e estar protegida de várias questões sociais. Em relação ao aumento progressivo, substancial e preocupante de internações de crianças menores de cinco anos nessa última década, a pediatra conta que tem visto mais rotineiramente crianças pequenas desnutridas sendo internadas e, após quatro semanas, estão em melhor condição nutricional apenas por comer no hospital. “Eu já vi nos pronto-socorros os pais levando seus filhos a cada dois dias, dizendo que as crianças estão com chiado, e percebemos que elas não estão doentes. Eles vão porque lá tem um lanchinho na recepção enquanto esperam. É muito triste de ver”, completa Fabíola.

“A área de segurança alimentar do Ministério da Saúde foi totalmente desmantelada nos vários ministérios que participam da estruturação dessa política”, aponta Gonzalo Vecina Neto, médico sanitarista, fundador e ex-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e um dos idealizadores do Sistema Único de Saúde (SUS). De acordo com ele, “o Brasil nunca teve estoques tão baixos de alimentos regulados pelo governo para garantir a segurança alimentar. Nós estamos vivendo na iminência da insegurança alimentar desde 2016. E durante os quatro anos do governo Bolsonaro isso piorou muito. Essa é a consequência que nós estamos vivendo, crianças nessa faixa de 0 a 5 anos com desnutrição grave sendo internadas exclusivamente para serem alimentadas.”