04/11/2022 - 9:30
Novo governo
Nos quatro anos de governo Bolsonaro, o presidente e seus seguidores se dedicaram a um discurso de sandices. As mentiras foram tantas, e proferidas com tamanha convicção, que a sensação era de que eles estavam vivendo numa dimensão paralela, na qual a realidade é distorcida a favor deles o tempo todo. Assim, a mais representativa das asneiras foi a teoria (?) da Terra plana. Além de estúpida, é uma imagem que poderia simbolizar esse outro mundo em que bolsonaristas querem reescrever a história. Junto com esse planeta no formato de pizza, outros ícones e personagens do governo devem abandonar o dia a dia das pessoas.
A matriz da maioria das fake news que balizaram essa realidade alternativa perdeu sua razão de existir com a derrota nas urnas. É o Gabinete do Ódio, a milícia digital de assessores sob comando de Carlos Bolsonaro, filho do presidente. No futuro governo do PT, encontros de grupos que podem influenciar o rumo das ações provavelmente estarão restritos às reuniões de consulta às bases que marcam as gestões do partido. Falando em bater boca, no campo das relações pessoais as brigas entre parentes nos eventos familiares devem perder intensidade, e aos poucos pode ser retornado o hábito de papo-cabeça em mesas de boteco, nos quais divergências ideológicas não precisam levar à confrontação física. Com a promessa de reverter o aumento de armas nas mãos da população incentivado pelo governo que deixa o poder, a nova gestão pode restabelecer o debate de argumentos, sem que alguém saque uma arma para acabar com a discussão.
Personagens que tiveram seus momentos sob holofote ao lado de Bolsonaro devem ser reconduzidos ao ostracismo. A ex-atriz Regina Duarte, que se prestou a um papel patético numa breve e inútil atuação no governo, deve voltar à aposentadoria artística. Global por global, nomes com Luciano Huck, em alta na TV e com um discurso articulado de preocupação com o País, devem ganhar espaço. No caso dele, até uma via política de atuação partidária. Preocupação social também deve projetar ainda mais nomes do empresariado, como Luiza Trajano, que com seu grupo Mulheres do Brasil consegue uma mobilização maior do que alguns dos partidos atualmente no jogo político. Para que nomes como o dela tenham espaço de articulação, devem ir para o ostracismo figuras como Luciano Hang e suas roupas verdes e amarelas. Sua conscientização social e seu senso estético inexistem.
Acabou a motociata
A maior relevância das discussões políticas e socais deve afastar modelos de propaganda política vazios, como as motociatas. O encontro dos governantes com as pessoas deve voltar aos palanques, às exposições de ideias, muito além de um passeio pela rua acenando aos que estão na calçada. Chega de ver o presidente sorrindo em cima de uma moto ou de um jet ski, este um outro ícone desgastado depois de quatro anos de demasiados períodos ociosos de quem estava no poder. A sensação de liberdade defendida pelos apreciadores do jet ski, um poluidor marinho que custa caro, pode dar lugar ao skate, um esporte radical que cresce exponencialmente no Brasil, elege ídolos improváveis com Rayssa Leal e integra jovens de diferentes classes sociais.
A guinada na política pode até afetar a maneira como as pessoas irão torcer para o Brasil na Copa do Catar. Todo mundo deve continuar torcendo a favor, mas o protagonismo pode sofrer alterações. Neymar, a estrela da companhia, tinha prometido comemorar gols fazendo “22” com os dedos, para celebrar a eleição de Bolsonaro. Um ídolo que arrasta milhões de admiradores e detratores na mesma proporção, ele pode perder espaco para figuras como o técnico Tite. Embora não tenha manifestado publicamente o voto em Lula, pessoas próximas ao treinador afirmam que ele é um apoiador do novo presidente. Nos últimos anos no comando da seleção, Tite tentou evitar que os jogadores se manifestassem, mas seu esforço caiu por terra com o bolsonarismo exacerbado dos maiores ídolos do elenco, como Neymar e Daniel Alves. Pelo menos na esfera política, Tite já deve começar a Copa como vencedor.
Troca de ideias
No campo das idéias, desaparece cada vez mais a influência de Olavo de Carvalho e sua obra-guia de truculência idealista. Outros pensadores mais arejados devem disputar a atenção de quem quer discutir uma reconstrução do País. Larga na frente como protagonista o professor de Filosofia da PUC do Rio, Rodrigo Nunes, talvez o primeiro a identificar que o bolsonarismo se tornaria muito maior e perigoso do que a pessoa que lhe dá nome. Fica quase impossível refletir sobre a erradicação dos efeitos do bolsonarismo sem a leitura de Do transe à vertigem, obra seminal de Nunes. Nas livrarias, a enxurrada de livros sobre a crise da democracia deve perder força quando os efeitos dessa crise começarem a ser sanados na vida prática. As livrarias terão mais espaço para o verdadeiro fenômeno literário mundial, o gênero young adult, destinado a romances que atraiam os recém-saídos da adolescência. Entre os influenciadores, deve ficar em baixa a turma de Monark e outros divulgadores de discurso desconexo. Diante deles, Felipe Neto apoiou Lula e só se fortalece como o grande pensador on-line do País.
Na música, nem vale tanto afirmar que Anitta teve algum ganho substancial com a eleição de Lula, mas é certo que seu reinado pop de alcance mundial fica mais representativo com seu engajamento, principalmente no pedido a seus fãs maiores de 16 anos que tirassem o título de eleitor para ajudar a barrar a reeleição de Bolsonaro. Se Anitta já ofuscava a hegemonia do sertanejo no cenário musical do País há mais de uma década, essa superioridade cresceu com o fiasco da adesão maciça de ídolos da música rural universitária ao candidato à reeleição. Nomes de gerações sertanejas diferentes se prestaram a um evento oficial de campanha. Todos, de Leonardo a Gusttavo Lima, repetiram exaustivamente discursos semelhantes, tão ensaiados que se referiam sempre ao presidente pelo nome completo, Jair Messias Bolsonaro, como alunos com texto decorado para um jogral.
No tocante à gramática, deve sair de cena “cuestão”, retomando seu lugar a correta versão “questão”. E, certamente, “no tocante” também deve retornar ao limbo da língua portuguesa.