29/05/2020 - 9:30
Na falta de um plano federal, os dirigentes estaduais e municipais lidam com as realidades locais para o pós-pandemia. O governador de São Paulo, João Doria, anunciou na quarta-feira, 27, a reabertura parcial de lojas e shoppings, condicionada à avaliação da capacidade do sistema de saúde de cada região. Dois dias antes, Belo Horizonte liberou várias atividades. Mas o Rio ainda não conseguiu colocar em funcionamento a maioria dos hospitais de campanha, e Estados como Amazônia e Pará enfrentam o colapso dos hospitais e são obrigados a decretar lockdowns. “O Brasil poderia ter feito uma quarentena mais agressiva. Estaria saindo da situação mais cedo”, diz o economista Sérgio Vale, da MB Associados. “O mundo já está diminuindo o contágio e nós ainda estamos acelerando.” Ele aponta outros riscos, como a possibilidade de novas ondas da doença. Na Gripe Espanhola, há 100 anos, ocorrerem três surtos, e o segundo foi o pior. A retomada será gradual, com parte do comércio, serviços e indústria retomando suas atividades, mas sujeita a recuos.
Governo sem plano
O governo reagiu a reboque da crise. O coronavoucher ainda está repleto de problemas. Não funcionou o crédito para pequenos e médios empresários, responsáveis pela maioria dos empregos. Para a retomada, ainda não há plano. O ministro Paulo Guedes cogita criar frentes de trabalho de baixa remuneração para voluntários, mas nada foi anunciado. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), ligado ao Ministério da Economia, finaliza seu programa, que será submetido a Guedes até a metade de junho. Ele sugere mais crédito para reerguer as empresas, inclusive as do setor exportador. Também prevê a remodelagem das Parcerias Público-Privadas (PPPs), para torná-las mais atraentes, e vai mirar programas sociais e políticas de emprego. Seria bom que se concretizasse, já que os efeitos da crise são enormes. O País perdeu 1,1 milhão de vagas com carteira assinada apenas entre março e abril.
Na economia real, depois das ações emergenciais, as empresas começam a se voltar para o day after. A empresa de consultoria e auditoria KPMG nota que os empresários já passaram a se preocupar de forma intensa também com a volta para o cenário pós-pandemia. Acaba de divulgar um estudo que analisou os impactos da Covid-19, e dividiu as companhias em grupos. Alguns cresceram com a doença e se beneficiam com a mudança de hábitos. “A telemedicina durante muito tempo tentou se firmar, e agora virou uma realidade”, diz André Coutinho, sócio-líder de mercados da KPMG. O media streaming viveu uma explosão, como atesta o crescimento do Netflix e outros serviços. Serviços de entrega, como o delivery de refeições, também se consolidaram. Há segmentos que foram afetados e devem se restabelecer: o sistema financeiro, as empresas de transporte e de exames laboratoriais. Mas há áreas que precisarão se adaptar a novos padrões de consumo. É o caso das montadoras, que já estavam em transformação. As incorporadoras vão reavaliar seus lançamentos. Espaços corporativos serão menores, já que o home office vai se incorporar à rotina das empresas. E o turismo enfrentará uma nova realidade. “É o último elo da cadeia”, diz Coutinho. Um quarto grupo de empresas enfrentará um desafio ainda maior, com uma demanda permanentemente reduzida. É o caso dos aeroportos, já que as viagens corporativas serão menos frequentes. Os hotéis sofrerão com menos eventos corporativos, e precisarão combinar atividades presenciais e digitais. O mercado de esportes usará mais tecnologia e precisará encontrar novas formas de se monetizar. “A pior resposta é ficar parado”, diz Coutinho.

Para ele, o País perdeu tempo com a polarização política e deixou de planejar a volta à normalidade, que não será automática. “A retomada foi bastante difícil na China”, diz. Há um novo ambiente de negócios e as cadeias de fornecimento foram afetadas, o que é um desafio particular para as indústrias. Já a agricultura brasileira está numa posição privilegiada, pois vivia um processo de digitalização e se beneficiará com o câmbio desvalorizado.
Mas tudo dependerá da agenda macroeconômica, que tem desafios inéditos. O País vai chegar ao final do ano com 94% de dívida sobre o PIB e uma situação fiscal precária. O real foi a moeda emergente que mais se desvalorizou este ano, mostrando a falta de credibilidade no País. Sérgio Vale considera que algumas medidas serão inevitáveis, como o aumento de impostos, a revisão das isenções fiscais para as empresas e a aceleração das concessões e privatizações. Mas isso esbarra no quase incontornável problema político. Pela sua sobrevivência, Jair Bolsonaro pode rifar o programa de reformas do Estado e ceder a investimentos não sustentáveis em infraestrutura, como querem os militares e desejam avidamente os integrantes do Centrão. “Precisamos de um novo ciclo político. Temos o risco de virar uma Argentina, com estagnação, crise fiscal fora de controle, inflação e alta taxa de câmbio”, diz Vale. “É a situação mais difícil que já tivemos nas últimas décadas.”