Não é a primeira vez que a música erudita serve de inspiração para o cinema. Uma nova safra de produções recentes descobriu como a dinâmica entre maestros e orquestras pode servir de metáfora para um amplo leque de relações humanas, principalmente se há disputas pelo poder. É o caso do excelente Tár, filme de Todd Field que conta a história de Lydia Tár, regente fictícia que ocupa o pódio da conceituada Filarmônica de Berlim. Em um dos melhores papéis de sua carreira, a australiana Cate Blanchett interpreta uma mulher fascinante e egocêntrica, cujo talento serve de pretexto para que deixe de seguir as regras mais básicas da vida em sociedade.

A maestrina Tár é uma estrela. Inteligente e sedutora, suas versões para as sinfonias de Gustav Mahler (1860-1911) são definitivas. O problema é que ela se julga superior aos outros mortais – atitude que inclui o assédio e abuso sexual de jovens musicistas, que, depois, descarta sem o menor pesar. O fato de ser casada com a violinista da orquestra não representa empecilho algum. A situação só se complica quando uma de suas ex-amantes comete suicídio, bem no momento em que Tár se apaixona pela russa Olga Metkina (interpretada por Sophie Kauer, famosa violoncelista na vida real).

EM CENA Bradley Cooper como Leonard Bernstein e Gael García Bernal, como Gustavo Dudamel (abaixo): artistas geniais e egocêntricos (Crédito:Divulgação)

O fato de atribuir a uma mulher um comportamento geralmente masculino rendeu críticas ao diretor Todd Field. Há pouquíssimas maestrinas na história da música, o que torna a postura de Tár muito mais associada a homens poderosos do que a mulheres. Mas isso não reduz o poder do filme – na verdade, o amplifica. Abusadores agem de maneira semelhante, não importa se são homens ou mulheres. Mesmo assim, a produção recebeu duras críticas de Marin Alsop, regente da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo entre 2012 e 2019, e, desde 2020, sua regente de honra. Marin afirmou à imprensa internacional que se sentiu ofendida “como mulher, como maestrina e como lésbica”. “Ter a oportunidade de retratar uma mulher nesse papel e torná-la agressora foi, para mim, de partir o coração”. Há coincidências entre a personagem Tár e Marin: a reverência ao mestre Leonard Bernstein e o casamento com uma musicista, por exemplo.

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Citado em Tár, o maestro nova-iorquino Leonard Bernstein (1918-1990) vai ganhar sua própria cinebiografia. Bradley Cooper, que atua e dirige a produção, abordou seu sucesso musical, mas priorizou a história de amor ao lado de Felicia Montealegre (interpretada por Carey Mulligan), com quem foi casado por duas décadas. Um dos maiores compositores norte-americanos do século 20, Bernstein foi responsável por obras como Amor, Sublime Amor e Um Dia em Nova York. Outro homenageado nas telas é o venezuelano Gustavo Dudamel, maestro da Filarmônica de Los Angeles. O enfant terrible serviu como fonte para Sinfonia Insana (Mozart in the Jungle), série da Amazon Prime protagonizada por Gael García Bernal. A história combina a personalidade do latino-americano com casos do livro Sexo, Drogas e Música Clássica, relato de uma oboísta da Filarmônica de Nova York. Além da temática, todas essas produções têm algo em comum: uma bela e impecável trilha sonora.

“Já presenciei casos em que o maestro passou do Ponto”
Amanda Martins, violinista da Osesp

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O filme Tár é fascinante porque podemos enxergar o maravilhoso mundo da música vividamente. Todo o processo de criação, que hierarquicamente vem da maestrina, não seria possível sem a participação e empenho de pelo menos 80 músicos – número necessário para executar uma obra de Gustav Mahler por exemplo, compositor mais executado no filme. Assistimos de camarote às grandiosas salas de concerto, verdadeiros templos; às aulas em conjunto nas universidades, essenciais para a formação dos músicos; a conversas onde a música se funde a outras artes; ao ritmo dos ensaios de uma orquestra sinfônica; a um verdadeiro desfile de belas expressões técnicas; à concorrência entre os instrumentistas e a pressão artística que essa dinâmica gera; a provas para quem pretende ingressar em uma grande orquestra. Todos são pontos bem interessantes de acompanhar tão de perto.

O diretor Todd Field consegue uma alta veracidade ao trabalhar com atores que são músicos de altíssimo nível. É o caso da violoncelista Sophie Kauer, que interpreta a russa Olga Metkina. Field também trabalha bem a ambiguidade entre as intenções e as relações humanas, como no momento em que Olga se aproxima de Lydia, causando uma sensação de incerteza sobre a intenção dessa relação. Pode-se observar também uma peculiaridade especial em relação aos diferentes sons na tela, verdadeiros personagens com vida própria. O som varia entre uma presença intensa, uma massa sonora gigante de uma orquestra, a delicados ruídos no meio da noite. Isso nos coloca dentro da história, artifício tão importante para um filme, e se reflete na personagem de Lydia, que tem uma grande sensibilidade aos ruídos ao seu redor e no seu dia-a-dia.

Há ainda questões importantes relativas ao meio artístico e à vida pessoal das personagens. A predominância de compositores brancos, heteros e europeus no meio da música, por exemplo, causa um questionamento nas pessoas de grupos menorizados. Essa elite musical, fatia tão pequena da população mundial, oferece pouca representatividade às pessoas de grupos marginalizados, que não conseguem criar uma empatia ideal que os represente dentro da música clássica. O coração do filme, porém, é um tema atual e de urgente discussão: a personalidade de Tár é agressiva e abusiva, e ela enfrenta acusações por isso. O meio da música é um dos ambientes de trabalho onde esse tipo de situação é frequente. Há riscos para quem denuncia essa realidade, uma vez que muitos músicos são freelancers e, quando se pronunciam, deixam de ser chamados novamente.

Tár também nos dá a impressão de que a música é uma engrenagem, um relógio em constante movimento. Como na música, nossas vidas são regidas por essa fluidez e, assim, nos espelhamos nessa arte mágica que traz sensações que só os sons podem descrever.

Como violinista da Osesp, pude apreciar o filme com um olhar diferente e mais meticuloso. A rotina de uma orquestra e dos músicos é muito bem retratada, não só nas cenas dos ensaios, mas também quando aborda as manias que os instrumentistas adquirem ao longo de muitos anos de estudo. Como, por exemplo, adivinhar as notas de uma campainha e imitá-la em seu instrumento.

Como a música é uma enorme parte das nossas vidas, aprendemos a vivenciar o mundo com outro olhar – outra escuta, aliás. Criamos uma certa sensibilidade não só auditiva, mas emocional, para estarmos mais vulneráveis e abertos a utilizar este tipo de comunicação que muitas vezes não tem palavras Toco desde os catorze anos e, ao longo da minha carreira, já presenciei momentos em que o maestro passou do ponto em um ambiente de trabalho. Fui pouco regida por regentes mulheres, em comparação ao número de maestros homens. Sinto que esse cenário está começando a mudar, com mais mulheres chegando a cargos de prestígio. Minha observação final é que o filme poderia ter tido outra abordagem com relação à imagem da mulher no pódio. Me pareceu equivocado depreciar a história das mulheres que se tornam maestrinas, uma vez que esses casos são, em sua maioria, cometidos por homens. Já vencemos muitas batalhas, mas ainda há muitas lutas pela frente. Como mulher musicista, gostaria de ter visto no filme uma condução mais humana do nosso papel.

Amanda Martins, violinista da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (OSESP)