22/07/2022 - 9:30
Em uma passagem de Ensaio Sobre a Cegueira, José Saramago escreve: “dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos”. A ideia de que os seres humanos são feitos de palavras, pensamento que dialoga com a filosofia do autor português, serviu de inspiração para uma obra baseada no léxico do escritor: o álbum biográfico Saramago – Os Seus Nomes. Ele reúne textos organizados ao redor de 200 temas, palavras-chave que constróem a trajetória do único ganhador do Nobel em língua portuguesa.

Companhia das Letras
347 págs. | Preço: R$ 194 (Crédito:Divulgação)
Dinâmico e original, o conceito foge do formato de autobiografia tradicional. Permite acompanhar a vida de Saramago por meio de suas relações e emoções, divididas em quatro categorias: espaços/lugares; leituras/sentidos; escritas/citações e laços/pessoas. As fotos que acompanham os textos, a maioria delas a partir de arquivos particulares, humanizam os trechos escolhidos, dando a eles rostos, construções, paisagens – memórias, enfim, como em toda biografia. Para os brasileiros, o livro representa algo especial: mostra a importância do País para Saramago, do seu amor pelo povo e por cidades como Rio de Janeiro e Salvador, além de escancarar o carinho por amigos como Oscar Niemeyer, Sebastião Salgado, Chico Buarque, Jorge Amado e Lygia Fagundes Telles, entre outros. Explora ainda a influência recebida de três autores: Machado de Assis, João Cabral de Melo Neto e Carlos Drummond de Andrade.
A obra traz outros tesouros, como cartas a um amigo, Nataniel Costa, em que o autor confessa que “está a encarar francamente a hipótese de ir para o Brasil, à busca de vida melhor”. A data da mensagem explica o motivo dessa vontade de deixar Portugal: foi escrita em 1962, em plena ditadura de António Salazar. “A minha possível ida ao Brasil está, por enquanto, nos nevoeiros das coisas que se desejam e ao mesmo tempo temem”, conclui, indeciso. Em outro trecho, fala sobre sua visita a Jorge Amado, em Salvador, onde passou três dias comendo bobó de camarão, muqueca de peixe e vatapá. “Estou de férias na Bahia e quero me sentir como um baiano”, afirmou. Conhecido por seu ateísmo, chegou a participar da Festa de Iemanjá, juntando-se aos devotos que levavam flores ao mar.
Origens
Para conhecer a vida de Saramago é preciso voltar às palavras iniciais do livro. A primeira delas é Azinhaga, onde nasceu em meio a uma “família de camponeses sem terra”. O autor narra a infância difícil e lembra de uma passagem curiosa: seu sobrenome, que é como se chama uma planta que servia de tempero para os mais humildes, foi acrescentado por decisão do funcionário do Registro Civil, que resolveu associar o recém-nascido à alcunha pela qual sua família era conhecida na pequena cidade. O autor só veio a saber o nome aos oito anos de idade.
Além da cidade natal, o livro elenca regiões de Portugal, como Alentejo e Lisboa, capital para onde o autor mudou-se ainda criança. E descreve outras localidades que o marcaram, como Lanzarote. A árida ilha espanhola passou a ser sua residência em 1993, quando decidiu por uma espécie de autoexílio. Recém-casado com a jornalista Pilar del Río, fez isso em protesto contra o governo português. Ele lançara Evangelho Segundo Jesus Cristo, e o governo censurou sua inscrição no Prêmio Literário Europeu alegando que a obra ofendia os católicos. Em meio a tantas palavras e conceitos (“Deus”, “morte”, “Moby Dick”), é o próprio Saramago quem melhor define esse livro: “A distância entre o que foi uma pessoa e o que se recorda dela é literatura.”