É difícil acreditar que Ney de Souza Pereira, mais conhecido como Ney Matogrosso, tem 80 anos. Seu espírito mantém a mesma juventude do garoto tímido nascido em Bela Vista, pequena cidade com apenas 25 mil habitantes no Mato Grosso do Sul. Apesar do isolamento adotado ao longo da pandemia, o artista está mais na ativa do que nunca: gravou o excelente álbum Nu com a Minha Música e viu sua biografia galgar as listas dos livros mais vendidos do País. O que o incomoda, mesmo, é a visão retrógrada do governo federal. Não considera Jair Bolsonaro “seu” presidente, mas um homem que quer destruir a cultura de forma consciente para evitar que ela abra mentalidades. “Sofremos um retrocesso tão grande que dá a impressão de que fomos parar da Idade Média”, afirma. Critica também a forma como o governo lidou com o coronavírus, comportamento que ajudou a transformar o Brasil em um “país de mendigos”. Ney lembra ainda da surpresa que foi descobrir o amor entre homens quando serviu o Exército, na juventude, e revela que o segredo da longevidade saudável é comer de tudo em poucas quantidades – e manter a cabeça ativa.

Você que foi filho de sargento, como vê a volta dos militares ao governo, desta vez por meio das nomeações feitas pelo presidente Jair Bolsonaro?
Era mais ou menos evidente que isso aconteceria, mas queria destacar uma coisa: o alto escalão das Forças Armadas tem gente culta e muito preparada, bem diferente do nosso presidente. O problema é quem ele escolhe. Na verdade, falei “nosso” , mas errei. Melhor me referir a ele como “o” presidente. Não o considero “meu”, não me representa.

Como vê a cultura no Brasil hoje? Sobreviveremos a esse governo?
A destruição só será interrompida quando mudar o presidente. É um governo que conscientemente quer destruir a cultura porque é uma área que abre mentalidades. Para eles, não é conveniente esclarecer a população.

Politicamente, como se posiciona, à esquerda, direita?
Não tenho isso, prefiro ter bom senso. Prefiro avaliar as pessoas e apoiar. Mas esse governo que está aí, eu não apoio. É muito retrógrado.

O senhor recentemente completou 80 anos. Qual é a melhor parte de envelhecer? E a pior?
Entendo agora que envelhecer é uma coisa por fora. Por dentro, no sentimento, na cabeça, sou a mesma pessoa. Observo as mudanças, mas apenas no exterior. Isso não me assombra, convivo bem com essa possibilidade e com essa parte inevitável da condição humana.

Sua família é conhecida pela longevidade. Além da boa genética, qual é o segredo para chegar aos 80 tão bem?
Não sei. Me cuido, e faço ginástica regularmente desde os cinquenta anos. Como muito pouco, mas com variedade, não tenho nenhuma restrição alimentar. Não faço dietas, mas gosto de comer pequenas quantidades de verduras, frutas, carne, uma alimentação super normal. Outra coisa importante é manter a cabeça ativa. Se eu me acomodar, vou perder a graça. Prefiro fazer sempre o inesperado.

Apesar de ser um artista muito popular, sempre foi uma pessoa discreta fora dos palcos. Como foi a experiência de revelar coisas íntimas em sua biografia?
Sou discreto, sim, mas não tenho segredos. Nunca fui de esconder nada porque achava que tinha que falar antes que os outros falassem de mim. Sempre quis me antecipar antes que viessem atrás de mim, me apontando o dedo. Não tenho problema em falar da minha vida, tenho direito de me expor.

Você cresceu na fazenda do seu avô, cercado pela natureza. Como vê a questão do meio ambiente hoje? É preocupado com o futuro das próximas gerações?
Vejo esse tema como muito horror. Estamos devastando o Brasil, o País está sendo surrupiado, as árvores, derrubadas e vendidas. Estamos sendo saqueados mais uma vez, só que desta vez é pior, porque é de dentro para fora. É muito preocupante porque trata-se do futuro dos brasileiros e da humanidade. Isso não é problema só para as próximas gerações, pode ser que já nos afete em breve.

Na juventude, depois de conflitos familiares, você deixou o interior de Mato Grosso do Sul para se alistar na Aeronáutica, no Rio, nos 1950. Como foi a descoberta do amor nesse cenário?
Foi uma surpresa absoluta porque eu não sabia dessa possibilidade. Eu não conhecia esse mundo, era apenas um garoto. Tambem foi importante pessoalmente porque ajudou a pavimentar meu pensamento. Descobri que aquilo que eu via ali não era sem-vergonhice, era amor. E eu não sabia que isso existia entre homens.

O que pensa do casamento gay? E da adoção de filhos?
Assim caminha a humanidade. Se as pessoas querem e podem, devem realizar. Eu não quero me casar e não quero ter filhos, mas quem quer e a lei permite, está tudo certo.

O grupo Secos & Molhados foi formado em 1973. Se surgisse hoje, como acha que seria a reação do público?
O Brasil está muito careta hoje em dia, por isso poderiam estranhar muito mais do que naquela época. Nos achavam diferentes, mas conseguimos ultrapassar aquela visão. Quando queremos definir a fase política atual, acho que a palavra “conservador” é muito doce. A verdade é que estamos mais atrasados, mesmo. Por outro lado, há uma outra verdade no Brasil, um lado que tem uma mentalidade mais aberta. A gente vê muitos artistas, alguns gays e trans, conquistando seu espaço. Temos os dois lados aqui. Sinto muito que exista essa gente do contra, porque poderíamos ser um país muito mais evoluído do que somos. Entendo, porém, que o processo de evolução não é contínuo, há avanços e recuos.

Essa visão retrógrada é no mundo inteiro ou só no Brasil?
O mundo inteiro está retrógrado, mas aqui é pior porque estamos em um extremo. Outros países passam por isso, mas nos EUA, pelo menos, já tiraram o gerador desse atraso, que era o ex-presidente Donald Trump. Temos que ir levando, acho que é um processo evolutivo natural.

Ao longo de sua extensa carreira, qual foi o pior momento que viveu no País?
Na ditadura e agora. Naquela época foi pior, porque matavam as pessoas. Mas agora também está está muito difícil porque sofremos um retrocesso tão grande que dá a impressão de que fomos parar na Idade Média.

Como vê a forma como o Brasil lidou com a pandemia?
Voltamos a ser um país de mendigos, como éramos no passado. Isso é consequência de um governo que não soube lidar com o problema. A única coisa que eu vejo de positivo é que o brasileiro mostrou toda a sua solidariedade.

Você aprendeu algo com o período de isolamento?
Para falar a verdade, não. Muita gente deve ter aprendido a ficar sozinha, mas eu sempre fui acostumado a isso. Eu curto, não fico triste. Mas ficar isolado por obrigação, por causa de uma pandemia, isso me deixou infeliz.

O que acha do pessoal anti-vacina?
O termo negacionista já explica tudo. Isso acontece em outros países também. Eu estranho gente que nega as evidências científicas. Só estamos melhorando por causa das vacinas. Sinto que engatinhamos em direção à normalidade.

Como vê essa volta gradual aos palcos?
Fiz um show recentemente, foi muito bom. Senti uma felicidade na plateia, na banda. Também fiquei feliz de voltar ao palco, mostrar meu trabalho. Tenho shows marcados até o fim de 2022, tudo com os cuidados necessários. Só entra gente com vacina, sem visitas ao camarim. Aos poucos, vamos retornando à vida anterior.

O público estava mais animado que o normal?
Eram mais enlouquecidos que agora, mas foi pedido para que não se levantassem, não se aproximassem do palco, não dançassem. Achei interessante porque o público respeitou as regras.

Na música que batiza o novo álbum, Nu com a Minha Música, há um trecho que diz “às vezes é solitário viver”. Sente isso?
Não, não me identifico. É uma licença poética. Nunca me senti solitário, pelo contrário. Não gosto de muito tumulto ao meu redor. Prefiro ficar mais tranquilo, sempre fui assim. Claro que o meu trabalho me expõe muito, mas na minha vida pessoal gosto de pouca gente. Poucos por vez.

O que esse novo disco traz de diferente em relação aos outros que lançou ao longo da carreira?
O fato de ter sido feito em condições muito diferentes, sem ensaio, tudo pelo telefone. Ele me tirou do buraco durante a pandemia. Foi o que me puxou para cima, foi uma fase muito triste. Ainda não está tudo resolvido nessa área, mas naquele pior momento me causou um sentimento tenebroso.

Como costuma escolher o repertório?
Se a letra é compatível com algo que eu diria se fosse o compositor, então a seleciono.

O que acha das redes sociais? Acompanha, curte?
Não me interessa participar de uma arena onde todos têm opinião a dar. Nunca tive redes socias e não sinto nenhuma falta. Esse debate é muito selvagem, prefiro me preservar.

Como vê o futuro da música no streaming?
Somos muito mal remunerados pelas plataformas digitais. Não vou nem dizer o que recebo porque tenho até vergonha. E olha que sempre ganhei muito dinheiro com meus discos.

Quem foi seu grande parceiro musical?
Tive vários, mas vou contar uma coisa que ninguém sabe: quem montou três bandas maravilhosas para tocar comigo foi o César Camargo Mariano, ex-marido da Elis Regina.

Como você definiria a palavra “sucesso”? Para você tem um significado apenas econômico ou há outras dimensões?
Sucesso para mim é estar bem, realizando o nosso trabalho. Gostar do que fazemos e recebendo bem por isso. Sucesso é ter prazer com a vida que escolhemos.

Que conselho daria para um jovem cantor que está começando a carreira agora?
Para se diferenciar, tem que ser autêntico, passar a verdade sem entrar em modismos. Descobrir o que quer expressar e fazer isso com a sua verdade. O mundo e a vida são muito efêmeros. Sei que é mais difícil para quem está começando agora, mas não dá para fugir, esse é o mundo que eles estão encontrando. Não há alternativa: tem que encarar.