02/09/2022 - 9:30
O degelo global eleva o nível dos oceanos, atinge espécies marinhas e ameaça o planeta. O aumento da temperatura, no entanto, também leva a efeitos curiosos: com as ondas de calor na Europa, lagos e rios secam e acabam beneficiando historiadores e arqueólogos, que podem ter acesso a tesouros localizados em áreas submersas há milênios. A baixa das águas permitiu descobertas valiosíssimas, entre elas navios nazistas afundados por ordem dos comandados de Adolf Hitler, um tesouro celta de cinco mil anos e um círculo de pedras megalítico conhecido como Dolmen de Guadalperal. Descoberto em 1926, o local teve sua área inundada em 1963 por ordem de outro ditador, o espanhol Francisco Franco.

Antônio Carlos Jucá, diretor do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), destaca que os achados são de épocas bastante distintas. Há, por exemplo, dois navios que foram afundados ao fim da Segunda Guerra, parte de frota nazista desaparecida em 1944 e revelados recentemente em um trecho do rio Danúbio próximo da cidade de Prahovo, na Sérvia. Na Itália, a descoberta de uma bomba não detonada levou à evacuação de três mil pessoas da cidade de Mantua, próxima do rio Pó, onde também emergiu uma barcaça alemã afundada em 1943.
“Os navios nazistas são da era contemporânea. Ainda que já se conheçam as informações técnicas, as descobertas são importantes no contexto histórico”, afirma o professor, lembrando que essa é uma estratégia bélica: combatentes costumam se desfazer de material que possa ser útil se cair na mão dos inimigos – no caso, a marinha soviética. “Temos exemplo disso agora, na guerra da Ucrânia. A Rússia afundou o cruzador ‘Moskva’, o navio mais importante de sua frota no Mar Negro, para evitar que caísse nas mãos dos ucranianos.”

Além dos fantasmas nazistas, outras relíquias afloram com a seca na Europa. A Vila de Aceredo, na Galícia, por exemplo, se fez visível depois de inundada em 1992 para a construção de uma represa. No sudoeste da Inglaterra, a cidade de Derwent desapareceu depois de a região ter sido submersa em 1940 para a criação da represa de Ladybower. Ficou apenas a torre da igreja à vista, depois demolida. Agora todas as ruínas foram desnudadas pela seca. No sul do mesmo país também se revelaram outros vestígios bem mais antigos, do século 17, como foi o caso do Lydiard Park.

Mais macabras e até mais importantes para estudos antropológicos são as “pedras da fome”, com marcas que mostram o baixo nível da água em tempos de escassez em determinados períodos da história européia. A maioria ficou visível no trecho do rio Elba entre a República Tcheca e a Alemanha de hoje. A mais antiga remonta ao século 15; em uma delas, de 1616, a inscrição na pedra diz: “Se me vir, chore”. No rio Tibre, havia apenas partes de uma ponte, mas afluiu o esqueleto da obra dos anos 50 atribuida ao Imperador Nero, aquele que botou fogo em Roma.
História aniquilada
Realizada em 1926, uma das mais emblemáticas descobertas da arqueologia havia sido inundada, para desaparecer de vez por ordem do ditador Franco, da Espanha. Ela reapareceu agora: é o Dolmen de Guadaloperal, ou “Stonehenge Espanhol”, com as pedras do círculo megalítico de cinco mil anos à vista na represa Valdecanas, província de Cáceres.

O professor Jucá destaca a importância da marca deixada pelos celtas, povo que colonizou a região e foi antecessor dos romanos. Ultraconservador, Franco ordenou a inundação com base na fé católica, que não admitia os rastros da cultura pagã. “Locais históricos são aniquilados em nome da modernização. Foi o que aconteceu no Rio de Janeiro, com o Morro do Castelo, que marcava o centro da cidade e foi destruído porque era considerado ‘feio’. Essa é a concepção de progresso de ditadores. São atitudes típicas de autocratas que passam por cima de qualquer contexto, apagando patrimônios históricos importantes.” A verdade, porém, emerge.