O governo de Jair Bolsonaro editou 17 decretos, 19 portarias, três instruções normativas, duas resoluções e dois projetos de lei numa grande manobra para flexibilizar a compra de armas e munições no País. Entre outras determinações, permitiram a atiradores ter até 60 armas em casa e comprar 180 mil balas por ano, além de liberar a aquisição de fuzis semi-automáticos para os chamados CACs (colecionadores, atiradores e caçadores). Seus efeitos construíram um arsenal assustador: o registro de armas no País, que em 2018 era de 160 por dia, chegou a 1.200 diários em agosto deste ano, e agora, nos últimos momentos da gestão Bolsonaro, atinge espantosos 2.000 pedidos de registro de armas a cada 24 horas. Lula precisa colocar um freio nesse movimento e já está decidido que o primeiro ato de peso depois da posse será um “revogaço”, pacote que vai anular inúmeras decisões do governo anterior, notadamente os decretos pró-armas. Mas não basta revogar esses termos da lei. É preciso desarmar uma parte da população que, apenas durante o governo Bolsonaro, comprou mais de 1,2 milhão de armas de calibres variados.

O novo ministro da Justiça, Flavio Dino (PSB), declarou que entregará ainda este mês a minuta de um novo decreto ao presidente. Sem detalhes divulgados, sabe-se que a linha básica da nova regulamentação inclui a limitação de compras de armas e munições, mudanças no prazo dos registros, maior fiscalização de arsenais caseiros e novas regras para clubes de tiro, onde se concentram os CACs. Segundo o ministro, a ideia é evitar um vazio normativo com a revogação dos decretos.

RESISTÊNCIA Manoel Brancante: promessa de “balaço na fuça” de quem quiser tomar sua arma (Crédito:GABRIEL REIS)

IstoÉ conversou com especialistas sobre ideias para executar com eficiência o desarmamento. Eles afirmam a necessidade de um programa de recompra de armas inclusive com créditos tributários, o aprimoramento da fiscalização e a autorização de busca ativa, para retirar de circulação armas de grosso calibre que voltarão a ser proibidas nas mãos de civis, notadamente fuzis. Esses foram liberados por Bolsonaro numa decisão que iniciou a produção desse tipo de arma no Brasil, algo inédito. Integrantes do Grupo de Transição que trabalhou em Brasília desde a vitória de Lula querem que essa revisão seja feita nos primeiros 100 dias de governo, considerando perigoso manter um volume tão grande de armas em circulação por muito mais tempo.

Ivan Marques, advogado e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ressalta que uma preocupação é o desvio de armas compradas legalmente para o arsenal de milícias e facções criminosas. “Temos algumas evidências de desvio de armamento, principalmente do grupo que tem mais acesso a elas, os CACs. Temos evidências documentadas de que o crime organizado vem se utilizando de laranjas para a compra legal de armas de fogo e munições.” Para Michele dos Ramos, pesquisadora do Instituto Igarapé, é preciso enfrentar o legado do descontrole de armas. “Com relação especificamente a armas que podem deixar de ser acessíveis a civis, armas de grande potencial ofensivo, como fuzis, a grande preocupação é que elas não podem cair na ilegalidade. Não podemos permitir que o Estado perca o controle.” Ela cobra informações confiáveis. “Temos uma dificuldade em relação à confiabilidade e à acuidade dos dados do Exército. Precisamos saber quantas são essas armas e como elas estão distribuídas pelo País. O próprio Exército admitiu incoerências e inconsistências em suas bases de dados.,

Governo propagandista

Em seu primeiro mandato, Lula instituiu o Estatuto do Desarmamento, que levou a uma devolução voluntária de quase meio milhão de armas entre 2003 e 2005. Agora, o processo seria incentivado pelo pagamento de um volume maior de créditos tributários. Mas, para Bruno Paes Manso, jornalista e cientista político do Núcleo de Estudos da Violência da USP, a atuação de Bolsonaro nos últimos quatro anos criou um novo cenário. “Tivemos um governo que foi uma espécie de propagandista da compra de armas, então existem hoje lideranças políticas defendendo a compra de armamento como forma de autodefesa, incentivando as pessoas à iniciativa pessoal de se defender. A Segurança Pública é responsabilidade do Estado, e não de cada um, por sua própria conta.” Paes Manso reforça o fuzil como alvo central da investida de desarmamento. “No Rio de Janeiro, o poder do chefe do tráfico ou da milícia se mede pela quantidade de armas. Existem territórios com 400 fuzis, outros com 1.000 fuzis, outros com 150 fuzis, o que acaba sendo uma forma de medir o poder desses grupos.” Ivan Marques destaca a fiscalização como fundamental, porque identificará quem passa a ter em casa armas que voltam a ser ilegais. “Quando a pessoa tem em mãos, ainda que obtido de forma legal, um produto que se tornou proibido ao longo do tempo, ela precisa entregar esse produto, e para isso será indenizada. Caso contrário, ela passa a estar fora da lei.”

Focos de resistência

O arquiteto Manoel Brancante, 75, considera “absurdo” revogar os decretos. “A bandidagem está armada, e gente tem que se defender”, diz. Sobre a eventual proibição de fuzis para civis, ele diz não ver problemas em cidadãos comuns terem em casa esse tipo de armamento de guerra. ”Quem mata é o ser humano, não a arma!” Informado pela reportagem de que será mantido para cidadãos comuns o direito à posse de armas para autodefesa, ele diz que é “conversa pra boi dormir”. “Eles vão recolher tudo. E o povo desarmado morre, e em dois anos estaremos em uma ditadura.” Ele conta que tem uma arma na família desde os anos 1930. “Se alguém tentar arrancar ela de mim, leva um balaço no meio da fuça.” O metalúrgico aposentado Lorinaldo Neri de Pontes, 54, reforça essa posição. “Qual o problema de a pessoa ter 60 armas? Tem gente que tem dez carros, 30 pares de tênis, e tudo bem. Ou a gente tem liberdade ou não tem.”

Leopoldo Fielski, diretor de comunicação da Confederação Brasileira de Caça e Tiro, acredita que a limitação de armas em acervo pessoal pouco afetará os confederados. “De forma geral, eles têm poucas armas, e destinadas à prática desportiva. Os que conheço têm de quatro a dez armas. Normalmente, uma ou duas armas longas, pistola e revólver para tiro esportivo e defesa pessoal em casa. E carabina para tiro esportivo e manejo de javalis. E alguns que viajam ao exterior, com armas de caça.”
Para Bruno Laneani, advogado e gerente da entidade Sou da Paz, “algumas das mudanças propostas pelo governo eleito serão feitas com respaldo de decisões recentes do STF, que por 9 a 2 considerou várias das mudanças decretadas por Bolsonaro inconstitucionais. Em resumo, legitimidade política existe, e suporte jurídico também. Além disso, Lula em seu primeiro governo conseguiu retirar de curculação quase meio milhão de armas por meio de entrega voluntária em um intervalo de dois anos. Já há expertise para isso, mas será preciso contar com uma forte campanha de comunicação, reestruturação de postos de entrega, e atualização dos valores dos incentivos monetários.”

Compra é permitida hÁ quase 20 anos
Direito foi garantido depois do referendo das armas em 2005, no governo Lula

SHOPPING Frequentador observa uma vitrine de armas de grosso calibre expostas em clube de tiro em São Paulo (Crédito:Matias Delacroix)

O ano era 2005, e a população brasileira foi convocada a responder à seguinte pergunta: “O comércio de armas de fogo e munição deve ser proibido no Brasil?”. Era o referendo das armas. Ao todo, 64% de um universo de 95 milhões de pessoas disseram “não”. O referendo funcionou como uma eleição normal: o voto era obrigatório, e os cidadãos votaram em suas seções eleitorais – por meio de urnas eletrônicas. O mesmo sistema eletrônico de votação agora criticado por golpistas que resistem a reconhecer o resultado da eleição presidencial deste ano, portanto, foi utilizado para garantir aos brasileiros o direito, tão caro ao bolsonarismo, de ter armas para autodefesa. A realização do plebiscito estava prevista no Estatuto do Desarmamento, promulgado pelo então presidente Lula, em dezembro de 2003, depois de aprovado no Congresso. O projeto de lei que deu origem ao estatuto foi proposto pelo então senador Gerson Camata, do PMDB do Espírito Santo. Ele foi assassinato em 2018, aos 77 anos, em Vitória. Foi morto por um ex-assessor. O tiro fatal saiu de uma arma ilegal.