24/06/2022 - 9:30

Donald Trump prestou dois serviços à América: mostrou que mesmo a mais poderosa democracia do mundo produz aberrações, e provou que uma nação com instituições fortes pode se defender de fraudes, mentiras e ataques. Foi para investigar a invasão do Congresso americano, em 6 de janeiro de 2021, agora classificada de tentativa de golpe, que a Câmara americana instalou um comitê com nove representantes estaduais, presidido pelo democrata Bennie Thompson, do Mississippi. O trabalho teve início há mais de um ano. Junho de 2022 estava reservado para as audiências, que se estenderão por julho. Como o relatório deverá chegar a um calhamaço de 800 páginas, o comitê optou por chamar a atenção do público instalando um clima midiático para as oitivas de testemunhas ao vivo e em horário nobre, somadas a imagens, vídeos, gráficos e áudios de trechos de conversas gravadas. James Goldston, ex-presidente e produtor da ABC News, foi chamado para planejar a transmissão, que tem lances de suspense e emoção, além de teasers das próximas sessões.

“Trump tentou impedir a transferência pacífica de poder. Ele estava no centro dessa conspiração” Bennie Thompson, presidente do “Comitê 6 de Janeiro”
O público correspondeu: a primeira audiência do comitê já foi assistida pela TV por mais de 19 milhões de pessoas, enquanto grupos de espectadores acompanhavam por telões no parque onde fica o Capitólio, em Washington. Enquanto isso, ativistas promoveram mais de 90 eventos pelo país, chamando a atenção para as audiências iniciadas em 9 de junho, resultado de mais de mil testemunhos e coleta de 140 mil documentos. Diante de tanta atenção, a agência de notícias Associated Press criou uma editoria de Democracia, liderada pelo jornalista Tom Verdin, para cobrir “os desafios ao direito de voto, a gestão de eleições e combater a desinformação”. O editor-executivo do jornal “The New York Times” advertiu que “não existe jornalismo independente em uma sociedade que não é livre”. Detalhe: a Fox News, de tendência trumpista e fortaleza da direita americana, não transmitiu os depoimentos e passou horas atacando-os.
O trabalho de 45 funcionários está sendo revelado em “capítulos”, sendo que a invasão do Capitólio passou a ser encarada não como espontânea, mas parte de um extenso plano de Trump para impedir a posse de Joe Biden e se manter no poder. O relatório final do comitê deve sair em meados de setembro, algumas semanas antes das eleições de meio de mandado do democrata Biden, em novembro, que renovam os legisladores.
Nas audiências do comitê, que começaram em 9 de junho, houve comoção com testemunhos como o da policial Caroline Edwards, que disse ter vivido cenas de guerra, escorregando em sangue espalhado pelo Capitólio. O documentarista Nick Quested revelou que grupos de ultradireita estavam organizados e seguiram para o Capitólio antes mesmo do comício de Trump naquele dia. Testemunhas garantem que nem o próprio Trump acredita nas fraudes eleitorais que alega, caso do correligionário republicano Adam Kinzinger, de Illinois; do ex-procurador-geral Bill Barr (para quem as alegações eram “bobagens e malucas”) e até da filha de Trump, Ivanka. Vídeos do ataque ao Capitólio foram mostrados com manifestantes gritando “Enforquem Mike Pence!”. Pence foi o vice-presidente que se negou a obedecer Trump e ao advogado do presidente, John Eastman, para que bloqueasse a certificação de Biden pelo Congresso. Esse poderá ser o cerne da acusação contra Trump: uma conspiração, encabeçada por ele, que o comitê procura demonstrar. E que poderia levar ao indiciamento criminal do ex-presidente pelo procurador-geral Merrick Garland, do Departamento de Justiça.
Rusty Bowers, republicano do Arizona, pediu evidências a Trump sobre “mortos e imigrantes que tinham votado” na Geórgia e disse a ele e ao advogado/conselheiro Rudy Giuliani que jamais participaria de arranjos por votos para o presidente derrotado. Outro republicano, Brad Raffensperg, da Geórgia, disse que, em ligação de mais de uma hora, o ex-presidente queria que ele “encontrasse” mais de 11 mil votos, que lhe teriam “dado a vitória” no estado (o comitê reproduziu o áudio do telefonema). Houve quem revelasse ameaças de morte por carta, entregue em casa, como Adam Kinzinger, republicano do Illinois. Wandrea Moss e a mãe, Ruby Freeman, que participaram da contagem de votos na Geórgia, sofreram ataques racistas e ameaças de morte depois de acusadas diretamente por Trump e Giuliani de darem votos a Joe Biden.
Mais da metade do país puxa o freio de Trump: pesquisa da Ipsos/ABC News apontou crescente número de entrevistados (58% depois das primeiras audiências) a favor de que Trump seja acusado criminalmente. O presidente do Brasil deve estar atento ao que está rondando seu ex-colega e antigo ídolo.