Em março de 2018, a premiada musicista e escritora Patti Smith abriu sua conta no Instagram. Na rede social, começou a exercer seu melhor ofício — contar histórias. No caso, por meio de fotos e comentários em formato de textos. A artista reuniu um ano de publicações e as transformou na obra Um Livro dos Dias, que sai agora no Brasil. Uma dúzia de anos atrás, Smith foi laureada com uma das mais importantes premiações da literatura dos Estados Unidos, país em que nasceu. Com Só Garotos, onde narrou as memórias do período em que se relacionou com o renomado fotógrafo Robert Mapplethorpe no final dos anos 1960 e início dos 70, ela ganhou o National Book Award, como obra de não-ficção de 2010. Não apenas as décadas e formatos distinguem os dois livros, mas, também, a queda da fronteira que antes separava música da literatura.

Se formos estabelecer um ponto de virada para a transgressão entre ambas as artes, este aconteceu quando Bob Dylan ganhou o Nobel de Literatura, em 2016. O artista não se tornou eternizado pela sua coleção experimental de prosa e poesia, Tarantula, de 1971, nem pelo autobiográfico Crônicas, de 2004, mas “por ter criado novas expressões poéticas dentro da grande tradição cancioneira americana”, de acordo com a explicação da academia sueca, responsável pela premiação. Curiosamente, a personalidade arredia de Dylan deixou sem resposta o comitê do Nobel durante meses e ele faltou à cerimônia onde faria o discurso de aceitação do prêmio, sendo representado justamente por Patti Smith.

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“Dependendo do formato, é possível se destacar em setores diferentes e ainda ganhar prêmios e reconhecimento por isso. Se as letras de um compositor são boas, é uma questão de forma ele também estar presente em assuntos literários”, diz a vocalista do Pato Fu, Fernanda Takai, que lança seu quinto livro daqui a um mês: Quando Curupira Encontra Kappa. No mesmo ano em que Bob Dylan foi premiado, a cantora e compositora Rita Lee também o foi. Em 2016 ela lançou seu primeiro registro de memórias: Rita Lee: Uma autobiografia, que levou o troféu de melhor obra do gênero concedido pela Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA). No mês que vem, ela solta a continuação do volume, com o título Rita Lee: Outra Autobiografia, abordando período posterior no qual passou em tratamento de câncer.

A versão de artista conhecido pela música e digno de condecoração internacional pela obra literária vem com Chico Buarque. Autor de 14 livros desde 1967, ele já recebeu o prêmio Jabuti três vezes, por Leite Derramado, Estorvo e Budapeste. Até que, em 2019, o conjunto de sua obra o levou ao Prêmio Camões, que homenageia autor ou autora de língua portuguesa que “tenha contribuído para o enriquecimento do patrimônio literário e cultural do idioma”. Como Jair Bolsonaro se recusou a assinar o diploma da premiação, o presidente Lula concederá a honraria a Chico. Da turma mais próxima a ele, Caetano Veloso é outro famoso pela obra sonora que constantemente é lido em textos para revistas, jornais, conferências e prefácios. Uma coletânea dessa produção foi reunida em O Mundo não é Chato, uma de suas quatro obras desde Alegria, Alegria, de 1977. Das lembranças do Tropicalismo e de sua visão de mundo ele produziu Verdade Tropical. Mais recentemente, um dos capítulos desse último virou obra à parte — Narciso em Férias, no qual conta suas memórias de 54 dias de cárcere, após ser preso juntamente com Gilberto Gil com a promulgação do AI-5 pela ditatura militar, em 1968.

SUAVIDADE Fernanda Takai: prêmio Jabuti e texto leve em sua literatura para crianças (Crédito:Divulgação)

Na linha policial, mas na ficção, navega soberano pelos fiordes noruegueses Jo Nesbo, autor dos principais romances do gênero no país nórdico e que começou a trajetória artística na música. Economista, Nesbo formou a banda pop Di Derre, que teve a maior vendagem no país nos anos 1990. Até que teve o convite de editora para publicar romance. Adotou pseudônimo, para seu nome não interferir na análise e vendagem, e, 25 livros publicados depois, tem quatro adaptações cinematográficas de sua obra. Seu par brasileiro, com carreira profícua na música, literatura e adaptações para cinema é o guitarrista dos Titãs Tony Bellotto. Ele publicou 12 livros desde 1995 e os dois primeiros ganharam versão audiovisual, Bellini e a Esfinge, em 2001, e Bellini e o Demônio, em 2008. A literatura infantil é gênero que estimula a criação de músicos brasileiros. O rapper Emicida tem dois de seus três livros para crianças: Amoras e Foi Assim que Eu e a Escuridão Ficamos Amigas. Também conhecida das crianças tanto pela música quanto pela literatura está Fernanda Takai. Seu próximo livro será o terceiro voltado ao público mirim.

RAINHA DO ROCK Rita Lee: tratamento do câncer no segundo volume de sua autobiografia (Crédito:Divulgação)

“Eu ficava bem na dúvida sobre se era uma coisa boa ou se os canais estavam se misturando. Mas, olhando para o passado, diversos atores e diretores também fizeram música e poetas emprestaram seus versos a melodias. Acho que nas artes os limites são mesmo tênues”, diz Takai. Se quisermos avançar na composição de biblioteca básica de músicos que escrevem livros sobre os mais diversos temas, procuremos na literatura brasileira pelos autores João Barone, Thedy Corrêa, Humberto Gessinger, Tico Santa Cruz e Lobão; e na estrangeira, por Ozzy Osbourne, Miles Davis, Gene Simmons, Paul Stanley, Slash, Anthony Kieds, Dee Snider e Cindy Lauper.