30/09/2022 - 9:30

O indivíduo que busca superar perdas familiares e a dependência de drogas ilícitas e do álcool enfrenta sempre uma missão hercúlea. O desafio certamente cresce se isso ocorre durante uma campanha presidencial em que seu pai disputa o cargo de homem mais poderoso do mundo. Foi o que aconteceu com Hunter Biden, filho de Joe Biden. Para tentar exorcizar seus demônios e culpas, o filho do presidente dos EUA começou a escrever sobre sua vida no final de 2019. Nessa época, o candidato republicano à reeleição, Donald Trump, vendia em seu site produtos com referências aos seus problemas e incentivava sua horda a ofendê-lo na TV e nas redes sociais. Trump perdeu a eleição, Biden foi o vencedor. E Hunter renasceu ao fazer de suas memórias do subsolo um best-seller sincero, revelador e emocionante.
Basta folhear as páginas de As Coisas Boas da Vida para constatar que o título flerta com a ironia. A quantidade de dificuldades que o advogado de 51 anos teve de superar ao longo de sua trajetória imprime um certo ar de heroísmo ao relato. Perdeu a mãe e a irmã caçula morreram em um acidente de carro quando tinha dois anos de idade; seu irmão mais velho, bússola moral, morreu aos 46 anos vítima de um câncer no cérebro. Não é caso, porém, para compaixão: ele é formado pelas universidades de Yale e Georgetown, foi executivo de uma importante instituição financeira, membro de conselhos de grandes empresas e voluntário em causas sociais. Por outro lado, admite ter feito lobby e é responsável por escolhas discutíveis, que ainda são alvo de investigação pela Justiça norte-americana.
A virtude do livro, no entanto, não está nos deslizes ou conquistas profissionais. O valor humano de sua narrativa está embutido na questão que ele admite já na segunda página: a luta contra o alcoolismo e o vício nas drogas, dificultada pelo ambiente de poder e dinheiro em que estava situado. Comprava crack nas ruas de Washington, enquanto seu pai discursava como um dos senadores mais influentes dos EUA. Usava drogas em hotéis baratos em Los Angeles quando seu pai já era vice-presidente. Destruiu um casamento de duas décadas, teve armas apontadas para o seu rosto. O que emerge dessa experiência é um retrato digno de alguém disposto a reconhecer suas fragilidades emocionais e seguir em frente.

“Meu pai me salvou. Quando bateu à minha porta, ele me tirou do estado em que eu estava e me fez querer salvar a mim mesmo. Caso contrário, tenho certeza de que não teria sobrevivido”, afirma. O renomado autor Stephen King, que também passou por problemas semelhantes, descreve a obra como um ‘ato de coragem’: “Nos Alcoólicos Anônimos não importa se você vem de Yale ou da prisão: todos os viciados são iguais. Em suas dolorosas e envolventes memórias, Hunter prova que qualquer pessoa – mesmo o filho do presidente dos EUA – pode resvalar pela ladeira do pesadelo.” Embora esteja “limpo”, Hunter assiste a um festival de armadilhas criadas pela equipe de Trump para desestabilizar seu pai. A última delas é o filme Meu Filho Hunter, distribuído online, que apresenta Joe Biden e Hunter como dois corruptos coniventes que trabalham para subornar empresas americanas e europeias. Dirigido por Robert Davi, a peça de propaganda tem sido ridicularizada pela imprensa especializada, mas divulgada veementemente pela ala radical do partido republicano.
Em um dos trechos mais honestos de sua autobiografia, Hunter fala sobre a importância da segunda esposa, Melissa, no processo de recuperação. Desde o início do namoro, a sul-africana se comprometeu a romper todos os laços que ele mantinha com traficantes e conexões com o passado. Foi um caminho difícil: ela chegou a ser ameaçada de morte por criminosos que acusavam Hunter por dívidas do passado. Ela mudou o telefone do celular, alugou uma casa em outro endereço, vigiou passo a passo o marido. Hoje, o casal tem um filho recém-nascido batizado de Beau, mesmo nome de seu irmão. A criança é descrita como o símbolo de seu renascimento.