QUADRO E MOLDE Retrato a óleo e máscara mortuária de Mary Stuart, rainha da Escócia (abaixo): católica, ela reivindicou a coroa inglesa até ser executada por traição pela rainha protestante Elizabeth I da Inglaterra

As representações da rainha da Escócia Mary Stuart (1542-1587) se parecem entre si: tanto os retratos pintados quando viva como a célebre máscara mortuária vazada em cera logo depois de sua decapitação e até mesmo as versões cinematográficas e televisivas exibem o mesmo rosto regular, nariz afilado, olhar irônico e cabelos ruivos. Em torno dela domina a aura romântica, graças à história que escreveu com sangue, maquinações e traição.

Ao contrário dos quadros, moldes e maquiagens fiéis, as leituras que a posteridade fez dela são heterogêneas e até mesmo conflitantes. Há a Mary trágica que inspirou a peça de Friedrich Schiller em 1800, a vítima romântica dos homens segundo a biografa de Stefan Zweig (publicada em 1934 e recém-lançada pela José Olympio) e a mártir católica, como ela queria ser conhecida. Só faltava a chefe militar feminista. Esta é a contribuição do longa-metragem “Duas Rainhas” (Mary Queen of Scots), da diretora Josie Rourke, com a atriz americana Saoirse Ronan no papel principal e a australiana Margot Robbie como sua antagonista e prima, a rainha Elizabeth I.

Saoirse talvez seja a atriz menos parecida com o original entre as que interpretaram a rainha escocesa no cinema. Seus olhos são azuis — e não castanhos — e sua estatura, de 1,68 metro, difere da imponência de Mary Stuart, que media 1,80 metro. Mas a atriz ruiva e esguia como Mary foi convidada para o papel também pelo ar simpático que lembra o da rainha, famosa por criar no interlocutor a impressão de que o que ele dizia era a coisa mais importante do mundo.

Divulgação

“Essas mulheres estavam governando enquanto os homens trocavam tiros”, Saoirse resume o enredo. A produção, de fato, toma liberdades ao retratar Mary como a amazona que escolhe os parceiros sexuais e permite que um músico trans frequente o seu quarto — chega e tolerar que ele deite com o marido.

Apesar das infidelidades propositais, “Duas Rainhas” ajuda a renovar a visão sobre Mary, pois se baseou na biografia “A verdadeira vida de Mary Stuart” (2004), do historiador britânico John Guy. Sua pesquisa ainda é considerada a primeira contribuição fidedigna e inédita sobre o tema nos últimos em 30 anos. Por isso, deu certa credibilidade ao filme. Com base em documentação genuína, trajes, interiores e locações respeitam o gosto quinhentista. Além disso, Guy restaurou a pessoa de Mary. “Evitei descrevê-la como um punhado de estereótipos ou mitos”, afirma Guy. “Quis mostrar a mulher por inteiro, que fez escolhas e decisões que izeram sentido. Para isso, fiz com que ela falasse com suas palavras.”

Senso prático

Segundo Guy, Mary foi um modelo de ambição. Desafiou Elizabeth I, reivindicando para si o direito sagrado à coroa inglesa. Cresceu como rainha consorte da França e era sobrinha de Henrique VIII. Este rompeu com Roma para se casar com Ana Bolena, mãe de Elizabeth. O papa julgou o casamento ilegal e Elizabeth, filha bastarda. Este foi o argumento de Mary para enfrentar a prima e provocar uma guerra. Ficou detida por 19 anos, até receber a pena de morte. Nesse meio tempo, construiu o próprio mito.

“Ela criou a versão da mártir católica nos últimos anos de vida”, diz Guy. “Na verdade, era uma mulher pragmática que cobiçava o poder para unir os dois países.” De alguma forma, cumpriu sua meta: deu à luz um menino, que subiria ao trono britânico 15 anos após sua morte, como James I.

3 ROSTOS DA RAINHA
O cinema interpretou o papel de Mary Stuart segundo as modas de cada época

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