Para a maioria da comunidade carnavalesca, o que dá a real temperatura da festa a cada ano não é grandiosidade das escolas de samba ou o sucesso financeiro de comércio e serviços nas grandes cidades durante os dias de folia. Um bom Carnaval é aquele que consegue levar muita gente para a rua. Se depender disso, a edição 2023 já é o maior Carnaval da história. Depois da ausência da comemoração em 2021 e de festas de Carnaval em datas alternativas (e por isso menores) em 2022, a programação para este ano nas principais capitais do País chegam a superar os já muito bons números de 2020. Com a pandemia ainda começando a dar as caras no País em fevereiro daquele ano, os blocos de rua pulverizaram recordes. E estes agora caem diante do entusiasmo sem precedentes do Carnaval 2023.

São Paulo recebeu agora 663 inscrições de blocos. No ano passado, num mini-Carnaval fora de hora, em julho, apenas 216 blocos foram às ruas. Os números desta temporada superam os registrados em 2020, quando 644 blocos foram inscritos. Pode parecer um aumento pequeno, mas foi diante de um ano até então recorde na diversão das ruas paulistanas. No Rio de Janeiro, a mesma situação: 613 blocos inscritos, contra 543 em 2020.

O crescimento dos blocos no Rio e no São Paulo há três anos chegou a afetar o fluxo de turistas para as festas em Salvador e Recife, dois endereços consagrados do Carnaval brasileiro. Com uma atividade tão intensa em suas próprias cidades, parte dos paulistas e cariocas optaram por não gastar em avião e hotel em outros estados. Mas isso não parece frear a ferveção nas folias baiana e pernambucana, que projetam números avassaladores. O Galo da Madrugada, autodenominado o maior bloco de Carnaval do mundo, estima quebrar a barreira dos 4 milhões de foliões. Em 2020, a estimativa foi de cerca de 3,4 milhões pulando atrás do galo gigante que conduz o desfile por Recife. Em Salvador, a ocupação de 100% das vagas de hospedagem está bem próxima, incentivada pela expectativa de blocos e trios elétricos se apresentando a qualquer hora do dia ou da noite.

PRÉ-ESTREIA Bloco Tarado Ni Você: no feriado de aniversário de São Paulo, 25 de janeiro (Crédito:Isabella Finholdt)

É a festa da retomada. Os quase três anos angustiantes de convício com a pandemia de Covid-19, alternando momentos de pico preocupantes e alguns períodos um pouco mais tranquilos, só agigantou a expectativa dos foliões. A ordem parece ser enfiar o pé na jaca, para descontar os meses de reclusão forçada. A percepção dessa ansiedade foi tão forte que o Rio montou para este Carnaval o maior esquema operacional de sua história. Haverá a inovação dos desfiles de megablocos, concentrações dos grupos conduzidas para ruas escolhidas para minimizar o impacto no trânsito. Isso parece fundamental no ano em que a previsão é de bater os 5 milhões de pessoas no asfalto.

O Carnaval 2023 será extenso. A programação de blocos no Rio e em São Paulo começou no dia 21 de janeiro e vai durar até o dia 26 de fevereiro. A largada foi dada com grupos bem numerosos, e outro indicador de grandeza está na lotação constante dos ensaios nas quadras das escolas de samba. A Gaviões da Fiel, agremiação com mais seguidores em São Paulo, fez o ensaio técnico mais concorrido no Sambódromo, com cerca de 5 mil pessoas assistindo. E a divulgação da mídia foi enorme, destacando a madrinha da bateria Sabrina Sato, com a roupa que foi definida como “look Pantera Cor-de-Rosa”.

MADRINHA Sabrina Sato à frente da bateria no ensaio da Gaviões da Fiel no Sambódromo (SP), em 28 de janeiro (Crédito:Divulgação)

O Carnaval deste ano é como uma cruzada de revanche contra o coronavírus. Tamanho desejo de diversão só encontra comparação com o Carnaval de 1919, que injetou uma dose extra de felicidade nos foliões pelo fim de duas mazelas mundiais: a Primeira Guerra Mundial, encerrada em novembro de 1918, e a Gripe Espanhola, causada por uma variação do vírus influenza, que se configurou como a maior pandemia global até a Covid-19. A doença matou 50 milhões de pessoas no planeta, muito mais que as baixas totais da Primeira Guerra, com 8 milhões de mortos. Cerca de 35 mil brasileiros morreram na pandemia, sendo 15 mil deles apenas no na cidade do Rio de Janeiro.

Quando entrou o ano de 1919, a imunidade de rebanho tinha proporcionado níveis de contaminação muito baixos, trazendo a sensação do fim da Gripe Espanhola. No primeiro dia de março começou o Carnaval, que levou aproximadamente 400 mil pessoas ao Centro do Rio de Janeiro. O receio de uma nova onda da doença impunha a sensação aquele Carnaval poderia ser o último para muita gente. Então a ordem era se divertir como se não houvesse amanhã.

ENSAIO Acadêmicos do Baixo Augusta: primeiro ensaio do bloco em janeiro, no galpão do MST, em São Paulo (Crédito:Leandro Chemalle)

Voltar às ruas

Para Luiz Antonio Simas, historiador, professor e escritor, esta temporada guarda algumas semelhanças com o que aconteceu em 1919. “Eu acho que a gente vai ter uma pulsão pela ocupação da rua que é muito forte, até porque as ruas nos grandes centros estão sendo cada vez mais desencantadas. A gente vive um processo urbano muito marcado pela morte da sociabilidade das ruas”, diz o historiador, que não credita isso apenas à pandemia. “Você vai pegar grandes cidades, como as capitais, e a rua como um espaço do convívio está morrendo, agonizando. A gente está vivendo cada vez mais em casulo. É a quitanda de rua que vira hortomercado, é a barbearia que vai para dentro do shopping, é o cinema de rua que morre.”

Para Simas, “teremos uma pulsão sujeita a tudo, que tanto pode ter celebração, quanto uma série de tensões.” Ele relativiza a discussão sobre os riscos de aumento de contágio da Covid-19 no período. “Acho que a gente tem uma tendência de demonizar o Carnaval. Eu fui um sujeito contrário ao Carnaval de rua durante o auge da pandemia, mas você está tendo grandes aglomerações, em rodeios, shows de artistas e influencers, festival de música. Então, a rigor, não é o Carnaval que vai causar aglomeração nenhuma, ela está acontecendo.”

A médica infectologista Sylvia Lemos Hinrichsen, professora do Departamento de Medicina Tropical e Doenças Infecciosas na Universidade Federal de Pernambuco, diz que ninguém sabe ainda como o país vai ficar após esse período de aglomerações. “Principalmente em cidades do Nordeste, no Rio de Janeiro e em São Paulo, que têm festas com maior número de pessoas, temos que observar e ficar atentos não só para Covid, mas principalmente para as doenças que estão ligadas a relações sexuais desprotegidas e aquelas causadas por contato.” Mas a infectologista destaca que a pandemia ainda não terminou. “A Covid só tem três anos e o tempo da ciência muitas vezes é longo. Nós estamos ainda aprendendo a conviver com a doença. É importante lembrar que o vírus ainda circula e, por isso, a higienização das mãos é fundamental.”

1919 NOVIDADE: o Cordão do Bola Preta surgiu no primeiro Carnaval depois da Gripe Espanhola (Crédito:Divulgação)

A preocupação da médica também exibe ecos de 1919. Depois de números baixos de contágio no início do ano, o Carnaval fez a quantidade de infectados aumentar bastante, quase provocando uma nova onda na cidade. Na época, foi criado até o verbo “espanholou”. As pessoas diziam que fulano foi brincar o Carnaval e aí “espanholou”. Outra expressão ficou popular por algum temo, que era chamar os festejos de 1919 de “o Carnaval das perucas”. Muitos que sobreviveram à Gripe Espanhola perderam os cabelos na convalescência, o que levou o comércio a recordes na venda de perucas.

Não foi apenas o entusiasmo exagerado que marcou o ano. Os blocos carnavalescos de rua da maneira como são vistos hoje surgiram ali. Antes, desfilavam grandes grupos chamados de sociedades, criados pela elite carioca endinheirada. Havia também os corsos, desfiles de carros alegóricos que despejavam confete e serpentina sobre seus seguidores, em mais uma iniciativa da classe alta carioca. A festa de 1919 marcou o surgimentos de organizações muito semelhantes aos blocos atuais, como o Cordão do Bola Preta, que começou naquele ano e segue em atividade até hoje.

* Estagiária sob supervisão de Thales de Menezes