Kafka: Os Anos Decisivos
Editora Todavia 656 págs.
Preço: R$ 113

Uma biografia mediana sobre um grande personagem é algo comum, mas um relato com alta qualidade literária sobre um igualmente gênio da literatura é raridade. Pois foi isso que o pesquisador alemão Reiner Stach alcançou em Kafka: Os Anos Decisivos, uma daquelas obras que merecem o adjetivo de monumental. Segundo e principal de uma trilogia, o livro aborda um período curto da vida do autor tcheco – apenas cinco anos. No caso de Franz Kafka, no entanto, foi o tempo suficiente para que ele criasse algumas das obras mais importantes da literatura mundial. Entre 1910 e 1915, esse advogado e filho de comerciante decidiu levar a sua escrita a sério, dando início a uma trajetória genial. Fugindo do clichê “kafkaniano”, associado a situações paradoxais em que o protagonista se vê diante de um impasse ilógico do qual não consegue escapar, Stach prima pela objetividade. Isso não significa que sua obra seja simplista, pelo contrário: a narrativa é elegante, límpida e repleta da contextualização psicológica que só um grande conhecedor de Kafka seria capaz. A clareza de estilo é fruto de sua heterodoxa formação: Stach é filósofo e matemático, além de literato. Passou mais de uma década trabalhando com milhares de páginas de diários, cartas e fragmentos literários, muitos deles inéditos. Esse estudo permitiu ao autor chegar a minucioso nível de detalhamento da vida de seu biografado. É bom lembrar que, segundo a determinação testamentária de Kafka ao seu melhor amigo, Max Brod, todos esses manuscritos deveriam ter sido queimados. O próprio Kafka destruiu uma quantidade considerável de cadernos, Brod, para nosso deleite, desobedeceu as instruções após a sua morte e publicou todo o material.

Stach é o primeiro a elucidar o “enigma Kafka” por uma razão simples: foi ele quem descobriu o espólio de Felice Bauer, judia de Berlim com quem Kafka trocou farta correspondência. Foram mais de 500 textos, entre cartas e postais. Os dois não chegaram a se casar, mas ficaram noivos duas vezes, sendo que o último compromisso foi cancelado pouco antes do início da Primeira Guerra. Kafka ainda ficaria noivo de Julie Wohryzek, secretária de Praga.

A relação com Felice sempre se deu de forma instável. Não havia intimidade entre o casal. Ambos viviam em países diferentes e não sentiam vontade de estarem juntos. Stach narra o envolvimento com delicadeza: “Os dois dançam um minueto complicado, mas não gracioso. Um passo à frente, dois atrás, um baile de fantasmas sem toque e de uma lentidão peculiar. Estava claro que havia uma preponderância sufocante do imaginário sobre a realidade: ambos se alimentam de fantasias”. Kafka, inclusive, registrou suas dúvidas em um curioso texto de seu diário, em que elenca motivos a favor e contra o casamento. No item inicial, cita a dificuldade de suportar a vida sozinho: “Não se trata de incapacidade de viver, ao contrário, é mesmo improvável que eu saiba viver com alguém, mas sou incapaz de suportar as investidas de minha própria vida, as exigências que me imponho, as ofensivas do tempo e da idade, o vago afluxo da vontade de escrever, a insônia, a proximidade da loucura – sou incapaz de suportar tudo isso sozinho”. Na sequência, engata opinião contrária: “Sozinho, um dia eu talvez possa de fato deixar meu emprego. Casado, isso jamais será possível”.

Solidão

Apesar da vida social e da profissão aceitável – foi chefe em uma empresa de seguros –, Kafka teve uma trajetória limitada aos olhos de hoje. Aos trinta anos, ainda morava com os pais. À exceção de alguns meses, passou a vida inteira na mesma cidade com um pequeno círculo de amigos. Compensava o tédio com natação, ginástica, remo, jardinagem, descanso em sanatórios, modestos excessos nas tabernas de Praga. Isso sem contar o hábito de escrever, obviamente, que via como o verdadeiro foco de sua existência. “Escrever o acalmava e o estabilizava; quando escrevia um texto que dava certo, ficava feliz e autoconfiante”, narra Stach. O biógrafo lembra, porém, que seu perfeccionismo beirava a obsessão. “Para cada página manuscrita que considerava digna de ser preservada, havia dez ou vinte páginas que ele queria ver destruídas.”

Stach descreve com prazer a primeira vez em que Kafka se sentiu confortável com um texto: “Numa noite insone, em 1912, senta-se à escrivaninha e atravessa a madrugada trabalhando, colocando o ponto-final na narrativa quando os primeiros raios de sol surgem na janela”. Finalizara O Veredicto, primeira das três grandes obras que concluiria até 1915 – A Metamorfose e O Processo seriam as outras. Ambas são provas inegáveis de seu talento, que seguiria inabalável em uma vida que durou “quarenta anos e onze meses, até a morte por tuberculose na laringe em um sanatório perto de Viena”. Um fim solitário, como foi sua vida.