05/02/2021 - 9:30

Na semana passada, nove ministros do Supremo Tribunal Federal tinham, cada um diante de si em sua mesa, um abacaxi jurídico para começar a descascar na abertura dos trabalhos do Poder Judiciário (Marco Aurélio Mello se livrou da fruta porque está licenciado e Luís Roberto Barroso deu-se eticamente por impedido). O abacaxi em questão é o “direito ao esquecimento”, princípio pelo qual qualquer pessoa pode proibir na internet ou em meios de comunicação a exibição de um acontecimento antigo que a envolva, mesmo que seja ele verdadeiro, invocando a preservação de sua intimidade. A coisa é polêmica, não há o menor consenso entre juristas, advogados, juízes e promotores — e nem haverá no STF. A tendência será a Corte remeter o caso para regulação no Congresso Nacional, como o fez com a questão da prisão após sentença penal condenatória em segunda instância. Se assim o fizer estará acertando, uma vez que ao STF não cabe legislar.
O caso concreto que está em julgamento no tribunal com relatoria de Dias Toffoli (que até a metade da tarde da quinta-feira 4 não havia ainda expressado o seu voto) diz respeito ao estupro e assassinato de Ainda Curi, em 1958, no Rio de Janeiro: levada por Ronaldo Castro e Cássio Murilo ao topo do edifício Rio Nobre, na avenida Atlântica, lá Aida foi agredida, violentada sexualmente e arremessada do décimo segundo pavimento. Em 2004, a Rede Globo, no programa Linha Direta, reconstituiu o crime. Familiares da vítima entraram então processualmente na Justiça contra a emissora. Mais: pedem que o trágico episódio seja retirado da internet. “Não vejo como acomodar essa pretensão dos descendentes com o princípio constitucional do direito à informação e à liberdade de imprensa”, diz Paulo Cunha Bueno, professor de direito da PUC, em São Paulo. Também com base na Constituição, o advogado da Rede Globo, Gustavo Binenbojm, afirma: “A Constituição prevê a liberdade de informar e de ser informado”. Pela família Curi, o defensor Roberto Algranti Filho argumenta que “reconstituir o assassinato é a perpetuação da dor”. Fora do campo jurídico, o psiquiatra Eduardo Perin explica que “os familiares, com o caso aberto na internet, revivem tudo o que sofreram, a cada instante, e isso vai, com o tempo, aumentando o grau do estresse pós-traumático”.

Como se vê, o confronto de ideias se dá democraticamente entre os direitos individuais da família, como, por exemplo, o direito ao não sofrimento, e o direito constitucional da liberdade de expressão. O nó aperta ainda mais porque é a mesma Constituição, que garante a inviolabilidade dos direitos individuais, que contempla a liberdade de todos se informarem sobre tudo. Há, no entanto, uma outra discussão: perigosa porta entreaberta que ministros das Cortes superiores e, eventualmente, parlamentares, têm de fechar e passar um cadeado definitivo. Trata-se da fronteira entre o Estado e a Nação, entre o Estado e a cidadania, entre aquilo que é um fato de relevância republicana e um fato restrito ao âmbito individual. Por exemplo: o assassinato sob tortura do jornalista Vladimir Herzog e o nome de seus algozes no DOI-Codi paulista, comandado pelo coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra durante a ditadura militar, é um fato que diz respeito à República – e, assim, não podem jamais serem aquinhoados, os torturadores, com o “direito ao esquecimento”. O mesmo acontece, para citar alguns fatos, com o período da escravatura no Brasil, com o suicídio do presidente Getúlio Vargas ou com a gatunagem do PT enquanto esteve no poder.
Bem diferente, e aí sim pode caber o “direito ao esquecimento”, é um crime em uma família, justamente para que as crianças que a compõem não sofram com perguntas de amiguinhos na escola nem sejam constrangidas por brincadeiras de mau gosto. Na mesma linha, alguém condenado pelo furto de um carro, após cumprir a sua pena, poderia ter “direito ao esquecimento” até para tentar uma vida longe do crime. É essa fronteira, a separar o que é de interesse público e aquilo que se fixa no microcosmos da vida particular, que deve nortear julgamentos e eventuais leis.