Mil e oito dias separaram o primeiro ataque de Jair Bolsonaro às urnas eletrônicas e à diplomação de Lula como presidente eleito. Ao longo deste período, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) manteve-se altivo diante de uma infinidade de investidas do capitão: da ameaça de cancelamento da corrida pelo Planalto à contestação do resultado, passando por repetidos xingamentos a ministros. Em meio à turbulência, os quatro magistrados que ascenderam ao comando da Corte atuaram como verdadeiros bastiões da democracia. Rosa Weber foi a primeira a lidar com a histeria bolsonarista, ainda em março de 2020, e, em uma rara declaração à imprensa, atestou o óbvio: “a Justiça não compactua com fraudes”. Luís Roberto Barroso implementou um pacote de medidas para ampliar a confiabilidade do sistema eleitoral e colocou sob holofotes os riscos do voto impresso. Edson Fachin riscou o chão na frente de militares que buscaram tumultuar as eleições. E Alexandre de Moraes mostrou-se incansável na luta pelo desmantelamento de milícias digitais empenhadas na difusão de fake news e de esquemas de financiamento de atos golpistas.

Foram tempos árduos — e não apenas para o TSE. Um dos alvos preferidos do “gabinete do ódio”, o Supremo Tribunal Federal resistiu a diversos torpedos de extremistas que, insuflados por Bolsonaro, reivindicaram o fechamento inconstitucional da Corte e ameaçaram a vida de ministros e familiares. Não à toa, com 280 convidados, a cerimônia de diplomação de Lula e Alckmin, evento de praxe que reconhece a vitória da chapa e marca o fim do processo eleitoral, ganhou novos contornos, desenhados pelo simbolismo. Se, em anos anteriores, a solenidade era protocolar, em 2022 provou que a democracia brasileira está solidificada. Serviu, ainda, como prenúncio da retomada da harmonia entre Planalto, Judiciário e Legislativo. E, por fim, indicou que a busca pela pacificação do País, ainda dividido pela polarização política, não pode passar pela anistia a Bolsonaro e integrantes de sua claque golpista, investigados por crimes contra o Estado Democrático de Direito.

“Os grupos radicais serão penalizados para que ataques antidemocráticos e o discurso de ódio não se repitam nas próximas eleições”Alexandre de Moraes, presidente do TSE

Os recados foram ditos em alto e bom som e estampados em uma série de gestos. Com papel-chave na garantia de eleições limpas e livres, Moraes teve um destaque inusual a um presidente do TSE na cerimônia. Ao ser anunciado à tribuna, o ministro observou a plateia aplaudi-lo de pé por 50 segundos ininterruptos. Depois, discursou por 14 minutos e 27 segundos, em um tom mais duro do que o adotado na própria posse, segundo avaliam colegas de tribunal e aliados de Lula. É que, enquanto em agosto, Moraes prometeu que a Justiça seria “célere, firme e implacável” no combate às fake news, desta vez deu um passo à frente, sublinhou que a estabilidade democrática depende da “integral responsabilização de todos aqueles que pretendiam subverter a ordem política, criando um regime de exceção”, e assegurou que os grupos radicais serão penalizados para que ataques antidemocráticos, a desinformação e o discurso de ódio não se repitam nas próximas eleições.

Lula foi o segundo a usar o microfone e chegou a chorar, como em 2002, frisando que o terceiro diploma era, em parte, “de uma parcela significativa do povo, que reconquistou o direito de viver em democracia”. Para magistrados e aliados, o petista acertou o tom ao pontuar que a corrida presidencial ficou marcada pela disputa de “duas visões de mundo”, dizer que vai agir para garantir a normalidade institucional depois do fim do governo Bolsonaro e afirmar que “a frente ampla”, formada por partidos de centro que ajudaram a elegê-lo, terá voz ativa. O último ponto agradou os meios político e jurídico, em especial, porque indica que o trânsito com a gestão eleita passará por lideranças de diferentes espectros políticos. É que uma ala do PT ainda resiste — e muito — ao diálogo em razão do impeachment de Dilma Rousseff e da prisão de Lula. O trato com esse setor, portanto, costuma ser difícil.

O retrato da diplomação ainda serviu para mostrar arestas que podem ser aparadas. Indicados por Bolsonaro ao STF, Kassio Marques e André Mendonça não compareceram à cerimônia. Petistas dizem crer que os dois se ausentaram em uma deferência ao capitão e apostam na presença deles na cerimônia de posse — os convites ainda estão pendentes de envio. Em outra ponta, há quem defenda que Lula reconstrua pontes com Michel Temer, que não prestigiou a solenidade. Aliados do emedebista alegam que ele não embarcou rumo a Brasília porque tinha, no Rio, o próprio evento de posse na Academia de Letras Luso-Libanesa. Para alguns nomes próximos do petista, porém, pesaram para o vazio do assento os ataques dele ao ex-presidente, a quem se referiu como “golpista” na campanha. É a prova de que alguns trechos do caminho para a pacificação tendem a ser duros.