Os recados dados pela Polícia Federal (PF) e pelo Supremo Tribunal Federal (STF) nas investigações sobre os atos antidemocráticos de 8 de janeiro começam a fechar o cerco no entorno de Jair Bolsonaro. Na segunda-feira, 24, a maioria dos ministros da Suprema Corte votou para tornar 100 apoiadores do ex-presidente réus por envolvimento nos ataques às sedes dos Três Poderes e a expectativa é que os magistrados dêem o mesmo destino a outros 200 suspeitos de participação nos crimes contra a democracia e o Estado de Direito. Apontado como mentor intelectual da sanha golpista de seus eleitores, Bolsonaro esteve na sede da PF na quarta-feira, 26, para depor sobre seu o envolvimento nos episódios e, ao ser confrontado por publicações em sintonia com as pautas golpistas, disse ter publicado “sem querer” ataques ao regime democrático e foi além: culpou pelo erro remédios à base de morfina que tomou durante tratamento que fazia nos Estados Unidos no período das invasões às instituições brasileiras depredadas por seus seguidores. Como se não bastasse, o ex-capitão agora vê as apurações respingarem em outros aliados, como o general Augusto Heleno, ex-ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), que vem sendo acusado de ter “conspirado” nos últimos quatro anos.

VANDALISMO Militantes bolsonaristas destruíram as sedes dos Três Poderes, em Brasília, no dia 8 de janeiro (Crédito: Gabriela Biló)

A ISTOÉ mostrou, em fevereiro, que Heleno atuou pelo desmonte do GSI e contribuiu para sua inoperância no dia dos ataques. A reportagem exclusiva detalha como o general retirou militares de cargos estratégicos da pasta e da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) para deixar a gestão Lula sem reação à tentativa de golpismo. “Heleno foi de uma conivência abissal”, afirmou um ministro do STF à época. O militar ainda utilizou homens de confiança, como o então comandante do Exército, general Júlio César de Arruda, para barrar os desmontes dos acampamentos bolsonaristas na frente dos quartéis do Exército em vários pontos do País, como DF, São Paulo e Rio. Os espaços serviram de “incubadoras de terroristas”, conforme afirmou o ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino.

Nesta semana, o alto escalão do governo voltou a demonstrar que Heleno deixou suas digitais nos atos golpistas. Ricardo Cappelli, que assumiu interinamente o GSI com a demissão de Gonçalves Dias, afirmou que o general tem responsabilidade direta na invasão às sedes dos Três Poderes. GDias, como é conhecido, foi demitido após ter sido flagrado por câmeras de circuito interno do Planalto agindo com leniência e complacência com os invasores à sede do palácio do governo. “O general Heleno ‘pilotou o carro’ por 4 anos e entregou o ‘veículo’ avariado e contaminado para o general G.Dias, que o pilotou por apenas 6 dias. No 7° dia, o carro pifou. De quem é a culpa? Não é possível falsificar a história. Conspiração não passa recibo”, disse Cappelli.

PRESO Acusado de conspirar contra a democracia, o ex-ministro Anderson Torres está detido no Presídio da Papuda (Crédito:Cristiano Mariz)

A divulgação das imagens também repercutiu de maneira negativa para o governo. Lula foi forçado, pelo teor das gravações, a dar uma guinada na narrativa e contabilizou, além da primeira baixa no alto escalão, uma de suas primeiras grandes derrotas no Congresso. Um dia após o 8 de janeiro, no calor da repercussão dos atos, congressistas da base aliada começaram a se mobilizar pela coleta de assinaturas em apoio à instalação de comissões parlamentares de inquérito (CPIs) para investigarem os acontecimentos, paralelamente às eficientes apurações da PF e do STF. O ímpeto dos governistas, porém, foi de pronto barrado pelo próprio presidente, que, à época, temia sofrer desgastes na atuação das comissões investigativas no Congresso.

Este recuo controverso do mandatário só serviu à pauta da oposição, que passou a afirmar que o Planalto tentava abafar eventual participação nos bastidores do vandalismo. Na ocasião, o entorno do mandatário já o alertava sobre os riscos dessa conduta dúbia, pois o governo deveria ser o maior interessado em devassar a ação da barbárie cometida pelos bolsonaristas. As flagrantes imagens de inação e conivência de GDias com os invasores, contudo, colocaram Lula em uma encruzilhada, obrigando o petista a apoiar a abertura da CPI mista, porém, com a devida articulação governista.

OMISSÃO Gonçalves Dias, do GSI, foi demitido por Lula após a divulgação de vídeos mostrando sua inação nos atentados (Crédito:WILTON JUNIOR)

O requerimento de instalação da CPMI dos Atos Antidemocráticos foi finalmente lido pelo presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco, na quarta-feira. O ato marcou o início dos trabalhos da comissão, que, por ter atuação mista, contará com 16 senadores e 16 deputados em sua composição – ainda pairam dúvidas sobre qual das Casas ficará com a relatoria, presidência e vice-presidência. Diferentemente de outras iniciativas parlamentares neste sentido, como a CPI proposta por Soraya Thronicke (União Brasil-MS), no âmbito do Senado, a comissão mista patrocinada pelo bolsonarismo já nasce desfavorável ao governo. Agora, Lula terá de correr contra o tempo para impedir uma maioria opositora nas cadeiras da comissão. Para isso, o mandatário ficará ainda mais refém de Arthur Lira (PP-AL), uma vez que o presidente da Câmara é um dos líderes do maior bloco partidário da Casa, dono do maior número de cadeiras na CPMI. O humor do deputado alagoano com os petistas poderá mudar, caso o bloco governista, de fato, siga apoiando a indicação de Renan Calheiros (MDB-AL), seu inimigo político, para o posto de relator ou presidente da CPMI.

Lula está ciente dos riscos. Mesmo em viagem à Europa, o presidente se manteve atuante nas articulações no Parlamento. Um ator importante nas negociações é o ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, que tem mantido conversas diretas com Lira. Nos bastidores, o principal articulador político petista no Congresso tem defendido a indicação do líder do PP na Câmara, André Fufuca, para compor a relatoria da CPMI, caso a presidência vá mesmo para o Senado. Padilha esteve reunido com o deputado durante o aniversário do ex-presidente José Sarney, na segunda-feira, 24.

A queda de braço deverá se estender pelos próximos dias, quando haverá um verdadeiro xadrez político entre bancadas para definir quem dará a largada em vantagem na CPMI. O cálculo é importante: só com maioria constituída se terá votos para ditar a dinâmica dos trabalhos da comissão. Em 2021, no âmbito da CPI da Pandemia, nessa mesma disputa por poder, Bolsonaro amargou duras derrotas. Liderada por senadores críticos à sua gestão, a comissão revelou diversas irregularidades na condução da crise sanitária no País. É, inclusive, no sucesso desse colegiado que o Planalto tem se apoiado para reeditar o trio que tirou o sono do ex-presidente há dois anos. Além de Calheiros, os governistas articulam ter Omar Aziz (PSD-AM) e Randolfe Rodrigues (Rede-AP) no colegiado. Também falam em nomes como de Humberto Costa (PE) e de Otto Alencar (PSD-BA). Caso sejam confirmados, os senadores enfrentarão bolsonaristas dos mais barulhentos – o PL dá como certa a indicação de Eduardo Bolsonaro (PL-SP) e do ex-diretor-geral da Abin, Alexandre Ramagem (PL-RJ).

SENADO A CPMI dos Atos Antidemocráticos de 8 de janeiro foi formalizada na quarta-feira, 26 (Crédito:Fernando Donasci)

Apesar de temer os desgastes, a cúpula do Planalto tem defendido, publicamente, haver margem para o governo capitalizar a CPMI. A presidente nacional do PT, Gleisi Hoffmann, é outra que, com a publicidade das imagens, mudou de narrativa. “A CPI vai ser bem ruim para os golpistas. Melhor coisa foi abrir o sigilo desse material. Na semana passada foram denunciados 100 vândalos e agora o STF julgará mais 200. Com a CPMI vamos pegar o restante. Ninguém ficará incólume depois dessa tentativa de golpe”, prometeu a petista. “P.S: Os caras (sic) são tão idiotas que agora estão manipulando vídeos pra dizer que Lula presenciou a invasão, sendo que se tem provas de que ele estava em Araraquara. A invenção dessa gente não para de pé”, prosseguiu Gleisi em suas redes sociais. A realidade é que os bolsonaristas estão cada vez mais complicados perante a Justiça.