Foram mais cinco dias que abalaram a França, com manifestações de vandalismo que partiram de Nanterre, na região metropolitana de Paris, depois do tiro à queima-roupa que matou Nahel Merzouk, 17 anos, parado pela polícia em uma Mercedes amarela por direção perigosa em 27 de junho. No rastro dessa faísca e com um vídeo rapidamente repassado a milhões de celulares mostrando a abordagem criminosa, espalharam-se protestos, saques e detenções de jovens de subúrbio em confronto com as forças de segurança, mesmo após o indiciamento do policial Florian M., de 38 anos, acusado de homicídio doloso. No fim, foi a extrema direita que capitalizou com o saldo da violência, baseada em seu discurso sobre o “perigo” dos imigrantes para a identidade e o futuro do país.

Das ruas, os conflitos saltaram para as bancadas do Parlamento e o presidente Emmanuel Macron se viu espremido entre blocos da extrema-esquerda e da extrema-direita.

Enquanto a esquerda se mostrava indignada apenas por meio de discursos, 70 mil pessoas se mobilizaram para apoiar financeiramente a família do policial sob custódia: 1,5 milhão de euros foi arrecadado pela “vaquinha” virtual acionada por Jean Messiha, porta-voz de Marine Le Pen e Éric Zemmour, ex-candidatos à presidência da França contrários a imigrantes e também a franceses com ascendência árabe e africana.

Messiha chegou a comemorar, pelo Twitter: “O mundo deles está desmoronando. O nosso renasceu”.

Emmanuel Macron, com a primeira-ministra Elisabeth Borne e Gérald Darmanin, ministro do Interior (que também trata da segurança interna) (Crédito:Yves Herman)

Macron deixou a cúpula do Conselho Europeu em Bruxelas na terça-feira, 29, e cancelou a viagem que faria à Alemanha para se reunir em Paris com representantes do Parlamento e depois com mais de 200 prefeitos.

Recusou decretar Estado de Emergência e apertar leis contra imigração como a adversária Le Pen exigia, mas aprovou uma lei de urgência com isenção de impostos para acelerar a reabertura de estabelecimentos atacados e se mostrou favorável à responsabilização criminal dos autores, com multas de até R$ 150 mil para cobrir prejuízos com vandalismos.

Também foi chamado de autoritário por pretender restringir redes sociais, que responsabiliza pelo tamanho das manifestações.

Ações pontuais, no entanto, apenas amenizam o mal-estar que segue entre marginalizados da sociedade francesa e que explode contra a alta do custo de vida, a extensão da idade para a aposentadoria ou ações racistas por parte da polícia.

Segregados e ressentidos

Professora de Relações Internacionais na ESPM e especialista em Estudos Europeus, Carolina Pavese observa que na França a participação política faz parte do cotidiano e se dá em várias esferas. “Protestos são percebidos como elemento vital de seu componente democrático e muitas vezes levam a manifestações extremas de indignação”, afirma, explicando a diferença entre greves por “perdas de direitos” e de manifestações por “ausência de direitos”, como no caso de Nahel.

“Revolta e indignação têm permeado a construção de identidade dos jovens da periferia que, apesar de franceses, sofrem pela ascendência árabe e africana. São nascidos sob um processo de gentrificação dos grandes centros urbanos, onde vemos segregação de raças e de classes sociais que são empurradas para a periferia.”

Essa estratificação não é só da cidade, mas da sociedade, destaca. “Isso é muito perigoso, porque acentua preconceitos, dando oportunidade para movimentos extremistas e nacionalistas de promoverem um ideal da sociedade francesa — branca, cristã, ocidental — que é fictício”, observa Carolina.

“A extrema-direita tenta criar grupos sociais mais homogêneos, impedindo que diferenças se manifestem e incentivando a falsa percepção de que ‘aqueles outros’, dos bairros periféricos, são ‘estrangeiros’, mesmo sendo franceses. Assim, extremistas fomentam sua agenda xenófoba e se fortalecem.”
Carolina Pavese, professora na ESPM e especialista em Estudos Europeus

Em Hay-les-Roses, políticos conservadores em apoio ao prefeito Vincent Jeanbrun, que teve a casa incendiada na madrugada de domingo, 2 (Crédito:Gauthier Bedrignans)

Para a professora, “as várias Franças” que compõem a sociedade não conseguem viver em harmonia porque “governos se mostram míopes ou cegos” diante dessa diversidade e não encaram os desafios necessários à integração.

“Há estudos dando conta de que jovens franceses não-brancos têm 20 vezes mais chances de serem abordados pela polícia e a realidade do racismo, percebida por esses grupos, é negada pelo Estado. Essa negligência leva a extremos, como a onda impulsionada pelo assassinato do Nahel. Se os partidos convencionais não priorizarem essas questões de uma sociedade cada vez mais dividida, não só por questões econômicas, darão margem à manipulação cada vez maior dos radicais de direita.”

Pelas redes sociais, chegou a circular a mensagem supremacista “A hora de matar árabes é agora”, do perfil de um australiano que supostamente foi hackeado por um grupo extremista dos EUA (o Twitter foi questionado por não impedir a propagação por esse tipo de mensagens de ódio).

Os debates também se espalharam por todo o mundo árabe — da ex-colônia Argélia, principalmente, ao Líbano —, e revelaram analistas preocupados com a crise instalada pelo racismo que a islamofobia na França, vista como “oportunidade de ouro para a onipresença da extrema-direita na mídia”. E os saques, como o “presente da vida” para Le Pen.