Nos anos 1980, o alemão Andreas Heinecke foi incumbido pela empresa em que trabalhava de treinar um estagiário que havia perdido a visão em um acidente. Inicialmente, sentiu pena. Mas logo viu que estava errado. Fascinado com as habilidades do rapaz, quem aprendeu algo foi ele: uma lição de vida. Naquela mesma década, criou o Diálogos no Escuro, uma exposição com a missão de promover o intercâmbio entre pessoas com e sem deficiência. Assim nasceu a exibição que está na Unibes Cultural, em São Paulo, até o fim do ano. A proposta é colocar o visitante no universo de alguém com perda total de visão. Por isso, tudo acontece completamente no escuro para o público sentir na pele o que é viver como uma pessoa cega.

E como se vê uma exposição às escuras? Esse é o ponto: é preciso vivenciar. Em Diálogos, o visitante recebe uma bengala e é levado para o breu. Conduzido por um guia, caminha em espaços que simulam lugares do cotidiano, como parques, ruas e bares. Os ambientes aguçam as sensações de cheiro, temperatura, som e textura. São 50 minutos de uma experiência única, pois não se enxerga absolutamente nada. É necessário exercer a confiança no outro — o trajeto é feito em grupos de oito — e, ao fim, fica o potente aprendizado de empatia, diversidade, inclusão, conexão e integração.

A jornalista Lilian Bek, de 52 anos, visitou a instalação sem saber o que a esperava. “Achei que seria só um passeio. Não imaginei algo tão multissensorial. No começo, a sensação é desesperadora por estar lá dentro como se estivesse vendada. É um ambiente desconhecido, não se sabe onde pisar ou no que vamos esbarrar”, narra. Ser tirada da zona de conforto deu à comunicadora uma visitação catalisadora. “É impactante, é a completa escuridão. Quem está exposto é você: são situações e vivências de quem não enxerga. Faz pensar, pois fazemos tudo no automático: subir uma escada, cozinhar ou pegar uma condução. Então, se pensa: ‘Como uma pessoa com deficiência faz?’”.

A comoção de Lilian é a prova de como a exposição transforma. Desde sua concepção, passou por 47 países, e recebeu mais de 10 milhões de pessoas. No Brasil, esteve em 2015, 2016 e 2022, somando mais de 200 mil visitantes. Os números alegram os organizadores, cuja missão é quebrar barreiras. “Pretendemos diminuir os preconceitos existentes na sociedade e promover a coexistência”, diz Andrea Calina, sócia-diretora da Calina Projetos, responsável pela exibição. Para propagar a visibilidade, a Unibes trabalha para atrair a pluralidade. “É maravilhoso encabeçar um projeto dessa natureza. A grande mensagem que fica é de uma proposta civilizatória, que nos torna melhores como indivíduos”, completa Bruno Assami, diretor-executivo do centro cultural.

EMPATIA Instalação promove o intercâmbio entre pessoas com e sem problemas visuais: emoção e até choro (Crédito:Divulgação)

Há mais de 253 milhões de pessoas com deficiências visuais no mundo. No Brasil, são seis milhões, dos quais 600 mil são cegos. Em operação há 30 anos, a Diálogos no Escuro empregou mais de oito mil pessoas com deficiências visuais. São eles os guias que conduzem a vivência. O radialista André Ferreira, 46, é um deles — com a bagagem de ter trabalhado na montagem de 2015. O profissional perdeu a visão aos 27 anos por causa de um tumor no cérebro e as incertezas o preocuparam. “Não sabia o que poderia ou conseguiria fazer. O ‘e agora?’ assombra por muito tempo”, relembra. Foi na Fundação Dorina Nowill para Cegos que aprendeu o braille, mobilidade com a bengala e reabilitações que lhe deram autonomia. “Hoje eu me lembro da deficiência apenas quando falo dela. Não acordo pensando nisso. Simplesmente me levanto e vou trabalhar. É normal e automático”. Como guia, ele repercute o conceito de que sua condição não é um impedimento e mudar a mentalidade do outro o satisfaz. “Eu me emociono ao ouvir alguém dizer: ‘Passei tantas vezes por pessoas com deficiência e não reparei nelas. Agora sei como agir, abordar e lidar’. Aqui nós transformamos pensamentos, mudamos atitudes.” Aos interessados na imersão: Diálogos No Escuro terá temporada no Rio de Janeiro. A partir de 13 de abril, no Museu Histórico Nacional.