31/03/2023 - 9:30
Nos anos 1980, o alemão Andreas Heinecke foi incumbido pela empresa em que trabalhava de treinar um estagiário que havia perdido a visão em um acidente. Inicialmente, sentiu pena. Mas logo viu que estava errado. Fascinado com as habilidades do rapaz, quem aprendeu algo foi ele: uma lição de vida. Naquela mesma década, criou o Diálogos no Escuro, uma exposição com a missão de promover o intercâmbio entre pessoas com e sem deficiência. Assim nasceu a exibição que está na Unibes Cultural, em São Paulo, até o fim do ano. A proposta é colocar o visitante no universo de alguém com perda total de visão. Por isso, tudo acontece completamente no escuro para o público sentir na pele o que é viver como uma pessoa cega.
E como se vê uma exposição às escuras? Esse é o ponto: é preciso vivenciar. Em Diálogos, o visitante recebe uma bengala e é levado para o breu. Conduzido por um guia, caminha em espaços que simulam lugares do cotidiano, como parques, ruas e bares. Os ambientes aguçam as sensações de cheiro, temperatura, som e textura. São 50 minutos de uma experiência única, pois não se enxerga absolutamente nada. É necessário exercer a confiança no outro — o trajeto é feito em grupos de oito — e, ao fim, fica o potente aprendizado de empatia, diversidade, inclusão, conexão e integração.
A jornalista Lilian Bek, de 52 anos, visitou a instalação sem saber o que a esperava. “Achei que seria só um passeio. Não imaginei algo tão multissensorial. No começo, a sensação é desesperadora por estar lá dentro como se estivesse vendada. É um ambiente desconhecido, não se sabe onde pisar ou no que vamos esbarrar”, narra. Ser tirada da zona de conforto deu à comunicadora uma visitação catalisadora. “É impactante, é a completa escuridão. Quem está exposto é você: são situações e vivências de quem não enxerga. Faz pensar, pois fazemos tudo no automático: subir uma escada, cozinhar ou pegar uma condução. Então, se pensa: ‘Como uma pessoa com deficiência faz?’”.
A comoção de Lilian é a prova de como a exposição transforma. Desde sua concepção, passou por 47 países, e recebeu mais de 10 milhões de pessoas. No Brasil, esteve em 2015, 2016 e 2022, somando mais de 200 mil visitantes. Os números alegram os organizadores, cuja missão é quebrar barreiras. “Pretendemos diminuir os preconceitos existentes na sociedade e promover a coexistência”, diz Andrea Calina, sócia-diretora da Calina Projetos, responsável pela exibição. Para propagar a visibilidade, a Unibes trabalha para atrair a pluralidade. “É maravilhoso encabeçar um projeto dessa natureza. A grande mensagem que fica é de uma proposta civilizatória, que nos torna melhores como indivíduos”, completa Bruno Assami, diretor-executivo do centro cultural.

Há mais de 253 milhões de pessoas com deficiências visuais no mundo. No Brasil, são seis milhões, dos quais 600 mil são cegos. Em operação há 30 anos, a Diálogos no Escuro empregou mais de oito mil pessoas com deficiências visuais. São eles os guias que conduzem a vivência. O radialista André Ferreira, 46, é um deles — com a bagagem de ter trabalhado na montagem de 2015. O profissional perdeu a visão aos 27 anos por causa de um tumor no cérebro e as incertezas o preocuparam. “Não sabia o que poderia ou conseguiria fazer. O ‘e agora?’ assombra por muito tempo”, relembra. Foi na Fundação Dorina Nowill para Cegos que aprendeu o braille, mobilidade com a bengala e reabilitações que lhe deram autonomia. “Hoje eu me lembro da deficiência apenas quando falo dela. Não acordo pensando nisso. Simplesmente me levanto e vou trabalhar. É normal e automático”. Como guia, ele repercute o conceito de que sua condição não é um impedimento e mudar a mentalidade do outro o satisfaz. “Eu me emociono ao ouvir alguém dizer: ‘Passei tantas vezes por pessoas com deficiência e não reparei nelas. Agora sei como agir, abordar e lidar’. Aqui nós transformamos pensamentos, mudamos atitudes.” Aos interessados na imersão: Diálogos No Escuro terá temporada no Rio de Janeiro. A partir de 13 de abril, no Museu Histórico Nacional.