Esqueça tudo aquilo que você ouviu até hoje sobre a separação dos Beatles. A nova série “Get Back”, da Disney+, traz uma visão bem diferente das últimas sessões em estúdio da maior banda de todos os tempos. A culpa pela percepção anterior é de “Let it Be”, dirigido por Michael Linday-Hogg. O melancólico documentário lançado em 1970 priorizava as discussões entre os integrantes e dava a impressão de que eles se odiavam. Era, porém, apenas uma parte da história. Dividida em três episódios, com cerca de duas horas cada, a nova versão de Peter Jackson (“Senhor dos Anéis”) forma um retrato bem mais fiel do dia a dia dos Beatles nos estúdios Twickenham. Eles estavam reunidos para gravar um especial de TV, compor o novo álbum e planejar um retorno inesquecível aos palcos. As 60 horas de material bruto a que o diretor neozelandês teve acesso mostram quatro jovens de vinte e poucos anos se divertindo e compondo obras que seriam eternizadas mais tarde em dois álbuns, “Abbey Road” e “Let it Be”.

Havia discussões, mas nada anormal para um grupo de rock formado desde a adolescência. O mito de que Yoko Ono e Linda McCartney provocaram o fim da banda também cai por terra: há cenas das duas batendo papo em um clima bem amistoso. A série traz ainda a íntegra do show em que os Beatles marcariam a volta às apresentações ao vivo. Depois de cogitarem locais épicos, como as ruínas de um anfiteatro na Líbia e um transatlântico, optaram por algo mais simples: o teto da gravadora Apple, no centro de Londres. A separação veio pelo desgaste natural da intensa convivência por oito anos, além da morte do empresário Brian Epstein, em 1967. Paul e John queriam nomes diferentes para o seu lugar. O incrível “Get Back” dá a oportunidade única de ver que os gênios dos Beatles também eram jovens de carne e osso.

REFLEXÃO McCartney: “estávamos apenas felizes em tocar juntos”

ENTREVISTA • PAUL McCARTNEY
“Toda família tem momentos em que seus membros discordam”

O que pensou quando soube que Peter Jackson faria um novo documentário com as imagens de “Let it Be”?

Falei para Peter que não tinha certeza se ia gostar de rever o material, porque assistir à separação dos Beatles seria como reviver um luto. Ele me respondeu: “não estou vendo nada disso. Você pode não acreditar, mas há muitas coisas boas.” Eu caí no mito de que havia muita discussão durante as sessões e que as cenas mostravam que não gostávamos de tocar juntos. Foi um grande prazer ouvir Peter dizer: “não é isso que está aqui”. Então ele começou a me enviar pequenos trechos com cenas em que estamos brincando e foi ótimo. Lembrei que não foi um momento ruim. Musicalmente foi muito bom, e esse novo documentário corrige minha antiga percepção. Quem achava que tinha sido um período horrível vai ver e pensar: “espera um minuto, esses caras estavam se divertindo”.

O que você mais gostou ao assistir “The Beatles: Get Back”?
O acesso livre aos bastidores da banda. Você se sente realmente como uma mosca na parede assistindo aos Beatles trabalhando no estúdio. É uma sensação incrível. Pensei muito no meu relacionamento com John e George, e também na amizade entre George e Ringo. Foi isso que nos tornou fortes. Quando começo a fazer piadas, John engata na brincadeira e segue em frente. Foi assim desde que éramos crianças e foi ótimo relembrar nosso senso de humor. Adorei estar lá com a banda mais uma vez, ver como interagíamos uns com os outros, principalmente com John, no meu caso. Dá para que a gente se dava muito bem. Foi bom porque na época havia boatos de que estávamos sempre brigando. Sabia que isso não era verdade, mas acabei contribuindo para manter essa versão. Quem vê o documentário, porém, verá como éramos próximos: apenas quatro amigos tocando em um lugar maluco, em Londres, rindo um pouco da loucura que era ser dos Beatles.

Qual foi sua reação ao show no teto da Apple? Vocês discutiram outras possibilidades malucas, como as pirâmides do Egito ou um anfiteatro na Líbia…
Estávamos felizes em tocar juntos. Assim que a música começou, entramos de cabeça como aconteceu milhares de vezes ao longo de nossa carreira. Cada um sabia exatamente a sua parte, aproveitamos tudo desde o primeiro minuto. Amávamos tocar e, quando estávamos no palco, todo o resto desaparecia. Éramos apenas uma banda, sempre foi um algo muito especial. Os mesmos quatro caras que tocavam em pequenas casas noturnas de Liverpool, só que agora estávamos no teto da Apple. Vivemos muitas coisas juntos, desde os dias de Hamburgo aos primeiros shows na Inglaterra e, finalmente, na América. Tocar em um lugar exótico era uma ideia atraente, o Pink Floyd tinha feito isso nas ruínas de Pompéia. Mas não estávamos seguros sobre os detalhes e a logística. Depois os produtores vieram com outras ideias: fazer o show em um cruzeiro, com ingressos distribuídos gratuitamente para os fãs, ou no Coliseu, em Roma. Havia muitos dúvidas em relação a essas opções. A decisão final veio quando Ringo disse que não queria viajar para o exterior.

Você estava ciente do caos que acontecia nos bastidores do show?
Vimos as pessoas se reunindo na rua, foi emocionante. Era uma situação meio ridícula, mas você tem que lembrar que passamos por outras situações ridículas antes. Na primeira vez em que tocamos em Washington, as pessoas jogaram gelatina e nossos pés ficaram grudados no palco. É preciso muito senso de humor para passar por tudo isso. Demos muitas risadas ao longo do show. Quando a relação com os parceiros é sólida, pode se dar ao luxo de aproveitar e se soltar. Estávamos curtindo, dava para ver pela nossa atitude. Só soubemos dos problemas quando vimos os policiais interrompendo o show.

Há brigas, mas também há momentos mágicos em que vemos os Beatles compondo juntos.
Toda família tem momentos em que seus membros discordam. É normal. Era natural que às vezes um de nós discordasse do outro. Tínhamos certas regras para evitar isso. Por exemplo, se eu começasse uma música, os outros sabiam que eu teria prioridade para definir como seria o arranjo. Havia uma lógica em nossa pequena democracia. Os quatro tinham que concordar em tudo, ou não seria feito. As discussões eram normais, mas às vezes alguém ficava mais irritado. Durante um bom tempo eu me perguntei se havia sido muito agressivo com alguém. Há um trecho com Yoko, por exemplo. Lembro de ter pensado: “John é um cara louco e nós o amamos por isso. Ele se apaixonou por essa mulher e quer que ela fique deitada em uma cama no estúdio enquanto gravamos”. Isso nunca havia acontecido antes, por isso parecia muito estranho. Ficamos um pouco chocados no início, mas tivemos que aprender a lidar com o assunto. De repente me ocorreu que John havia se apaixonado por essa garota e, como era louco, queria que ela fique no estúdio enquanto gravamos. Tanto faz se porque ele a ama muito, por que não quer se separar ou por achar que ela lhe dava segurança. Mesmo que não parecesse a coisa mais normal do mundo, fomos em frente. Estávamos fazendo música e ela não estava interferindo em nada. Se aquilo fazia John se sentir melhor, era algo que tínhamos que entender. Estou feliz que a cena tenha sido incluída na série. Fico feliz que Peter tenha mantido essas pequenas discussões, porque do contrário teria parecido uma tentativa de manipular a realidade. Eram discussões leves, muitas famílias – e bandas – agem de forma bem pior. Há outra cena interessante. Peter me perguntou se eu tinha escrito “Get Back” antes de entrar no estúdio. Disse que não. Ele respondeu: “tenho imagens de você compondo essa música. O documentário traz cenas em que estou tocando, tentando uma melodia, depois outra. É mágico ver o momento real que uma melodia nasce de um pequeno barulho. Foi fabuloso para mim. Isso é o mais incrível dessa série: a intimidade. É um ingresso grátis para o estúdio em que os Beatles estão trabalhando, o local onde tudo aconteceu.

Billy Preston: como foi o envolvimento dele na época?
Nós conhecemos Billy em Hamburgo, quando ele tocava com Little Richard. Tinha 16 anos, era apenas um garoto. Nós o amávamos, era um cara fantástico, tocava muito bem. Quando ele apareceu em Londres, o produtor George Martin o convidou para visitar o estúdio. Foi como reencontrar um velho amigo. Foi legal foi porque nossa pequena família estava discutindo um pouco, e sentimos que era preciso se comportar bem na frente de um convidado. Não podíamos agir como estúpidos na frente de Billy. E ele era um ótimo músico: o solo de piano em ‘Get Back’ é bem no estilo da música negra americana, que nós amávamos. Canções como “Some Other Guy”, “Twist And Shout” e “A Shot of Rhythm & Blues” estavam sempre no repertório. Foi ótimo ter Billy por perto, a contribuição dele para “Get Back” realmente melhorou a música.