Memória

A voz de Gal Costa era um som tão brasileiro como o canto de um pássaro. É impossível negar sua impecável técnica vocal, mas a impressão que ela passava ao público era de alguém que abria a boca e simplemente deixava aquela melodia mágica sair. Um timbre perfeito e sublime: potente como uma cachoeira, límpido como um cristal. Foi um desses talentos naturais que raramente surgem no planeta.

A sorte é que Maria da Graça Costa Penna Burgos é brasileira e nasceu em Salvador. Completou 77 anos a cerca de dois meses, em meio a uma agenda corrida e impressionantemente diversificada. Era uma das poucas artistas que agradavam a todas as gerações: com a mesma naturalidade com que participava da série Encontros Históricos, na Sala São Paulo, ao lado da Orquestra Filarmônica do Estado, subia ao palco do Coala Festival, junto com jovens artistas como Tim Bernardes e Rubel. Com a mesma animação com que viajava pelas capitais brasileiras com um show em homenagem a Lupicínio Rodrigues,
entrava no estúdio ao lado de produtores bem mais novos. Foi assim em seu último disco: Nenhuma Dor, de 2021, produzido por Rodrigo Amarante, trazia duetos com novos nomes da MPB, como Silva e Criolo.

A carreira de Gal teve início no momento em que conheceu Caetano Veloso, Gilberto Gil e Maria Bethânia, em Salvador. Inseparáveis, os quatro montaram o espetáculo Nós, Por Exemplo, que estreou em 1964. Decidiram vir para o Rio de Janeiro, onde formaram o embrião do que viria a ser o Tropicalismo, movimento que revolucionaria a música brasileira – e do qual Gal seria a grande musa. Naquele que é considerado um dos maiores discos da MPB, Tropicália ou Panis et Circenses (1968), Gal gravou Mamãe Coragem, Parque Industrial, Enquanto seu Lobo não vem e Baby, seu primeiro grande sucesso. No mesmo ano concorreu no IV Festival da Record com Divino Maravilhoso, composição de Caetano e Gil. O sucesso lhe rendeu um convite para gravar o primeiro álbum solo, Gal Gosta, em 1969.

Ao longo da década de 1970, tornou-se a grande rainha da música brasileira. Lançou álbuns emblemáticos, entre eles o registro ao vivo Fa-Tal – Gal a Todo Vapor, icônico show dirigido por Waly Salomão, e Índia, disco transgressor nas letras e na apresentação gráfica: suas fotos em poses sensuais na capa e contracapa foram censuradas pela ditadura e o disco teve de ser vendido dentro de um saco plástico azul. Gravou na sequência Modinha para Gabriela, de Dorival Caymmi, hit que virou trilha sonora de novela e permaneceu durante meses no topo das paradas.

TRANSGRESSORA Gal Costa canta Brasil, de Cazuza: coragem de peito aberto (Crédito:Luciana Whitaker)

Em 1976, os quatro baianos inseparáveis, Caetano, Gil, Bethânia e Gal, transformaram a amizade em show e disco: Doces Bárbaros foi tão marcante para a cultura brasileira que veio a inspirar o enredo da escola de samba Mangueira em 1994, quase vinte anos depois. Nos anos 1980, explodiu em vendas com dois álbuns de estilos opostos: Aquarela do Brasil, inspirado na obra de Ary Barroso, e Fantasia, que lhe presenteou com um dos maiores sucessos da sua carreira: Festa do Interior, de Moraes Moreira e Abel Silva.

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A década de 1990 trouxe uma Gal mais Plural – nome, aliás, da turnê que fez em 1992. A imagem mais marcante do período, no entanto, foi a do show dirigido por Gerald Thomas, em que ela cantou Brasil, de Cazuza, com os seios à mostra. Outro momento determinante: a gravação do Acústico MTV, formato que a aproximou do público jovem. A partir daí, Gal passou a transitar com desenvoltura ainda maior entre os novos artistas que a idolatravam. Gravou com produtores alternativos como Moreno Veloso e Kassin, realizou duetos com estrelas em ascensão, como Silva e Criolo, incorporou elementos da música eletrônica.

Desfilava tanto pelo repertório tradicional – fez uma belíssima série de shows em homenagem a Lupicínio Rodrigues –, quanto por sons contemporâneos. Foi convidada para festivais com bandas de rock e artistas alternativos, como o Coala e o Primavera Sound – nesse último evento, realizado no final da semana passada, não chegou a se apresentar por motivos de saúde. Despediu-se do Brasil no dia 9 de novembro, após complicações de uma cirurgia para retirada de nódulo na fossa nasal. A morte pegou o Brasil de surpresa: a cantora que sempre esteve atenta e forte, não teve tempo de temer a morte.

O NOME DELA É GAL
Da bossa nova à música eletrônica

1959 professor João Gilberto

Divulgação

“João me ennsinou tudo. Sou cantora por causa dele”, afirmou Gal em uma entrevista a Jô Soares. Ela ouviu Chega de Saudade pela primeira vez em 1959, quando a canção tocou no rádio. Passou a conhecer melhor a carreira do ídolo ao arranjar um emprego na Roni Discos, em Salvador. Quando ele morreu, em 2019, Gal desabafou: “João Gilberto é o maior gênio da música brasileira. Influência defintiiva no meu canto. Fará muita falta, mas seu legado é importantíssimo para o Brasil e para o mundo”

1968 tropicalistas

Divulgação

Gal Costa cantou composições de Caetano Veloso, Torquato Neto e Tom Zé no revolucionário álbum Tropicália ou Panis et Circensis, que trazia uma combinação original de rock internacional e MPB

1973 censurada

Antônio Carlos Piccino / Agência O Globo

Consagrada como um dos maiores símbolos sexuais do País, Gal posou de tanga em poses sensuais na capa do álbum Índia. A ditadura não perdoou: o disco só foi liberado para ser vendido em um saco plástico azul

1976 quarteto inseparável

Divulgação

Após terem alcançado sucesso nacional, Gal Costa, Gilberto Gil, Maria Bethânia e Caetano Veloso montaram o grupo Doces Bárbaros para sair em turnê pelo País. O sucesso do show e do disco homônimo foi tão grande que em 1994, quase vinte anos depois, a história do grupo inspirou o enredo da escola de samba Mangueireira, no carnaval carioca

2007 mãe

Divulgação

Discreta em sua vida social, Gal nunca escondeu a bissexualidade. Realizou o sonho da maternidade aos 62 anos, quando adotou Gabriel, hoje com 17 anos

2022 moderna

Tão confortável em salas de concerto como em festivais de música pop, não teve medo de incorporar elementos da música eletrônica ao seu som

UMA CANTORA INDOMÁVEL
Inovadora na juventude, Gal se tornou campeã de vendagem, viveu a decadência e deu a volta por cima 

Gal Costa fez seu primeiro álbum com Caetano Veloso, em 1967. A gravadora Philips não confiava em nenhum dos dois jovens para um álbum solo. Domingo, disco que era uma aposta, se eternizou como clássico da MPB. Em dois anos, ela passou de nome menos destacado da trupe baiana que veio musicar no eixo Rio-São Paulo àquela que gravaria o primeiro disco impecável de um membro da Tropicália. Gal Costa, lançado no início de 1969, traz a voz já espetacular e na época nada disciplinada de Gal a serviço do repertório assinado por Caetano, Gil, Tom Zé, Torquato Neto, Jorge Ben e Roberto e Erasmo. Uma constelação. Se for inevitável destacar certas faixas, que sejam a regravação de Se Você Pensa, de Roberto e Erasmo, Que Pena, de Jorge Ben, e Baby, de Caetano.

Em 1971, Gal mostrou que sua força não vinha apenas do timbre único. O show Fa-Tal exibiu o vocal ainda mais indomável, aliado a uma presença magnética no palco. Ela trouxe à MPB o conceito de “atitude”. O álbum Fa-Tal – Gal a Todo Vapor se tornou o disco ao vivo de maior impacto lançado até então no Brasil. Além de compositores queridos, como Roberto e Erasmo (Sua Estupidez) e Caetano (Como Dois e Dois), exibiu a incrível Pérola Negra, do então desconhecido Luiz Melodia. Em 1973, lançou Índia, primeiro trabalho em que a unanimidade da crítica não chegou.

No final dos anos 1970, a cantora iniciou um longo período como grande vendedora de discos. Entre muitos sucessos, enfileirou dois álbuns com um milhão de cópias vendidas, Gal Tropical e Aquarela do Brasil. Mas, longe de seus companheiros de Tropicália, as produções soavam pouco inspiradas, constrangedoras. Sua voz continuava uma força da natureza, e vez ou outra ela entregava um hit para antologias, como Festa no Interior, mas era muito pouco. As vendas despencaram de vez. O baque a levou a ficar seis anos sem gravar, entre 2005 e 2011. Aí veio Recanto, um disco em que Caetano escreveu todas as faixas e fez a produção. Uma espécie de Domingo mais maduro. Em 2015, o crítico e produtor musical Marcus Preto a levou ao som eletrônico e a experimentações que ela não encarava desde os anos 1970. Fez Estratosférica e A Pele do Futuro, álbuns inventivos, com a voz novamente em modo furioso. Uma consagradora volta por cima. Como dizem títulos de seus álbuns, ela é Legal e Fatal!

Thales de Menezes