Tempos difíceis – para estes tempos” é o livro de Charles Dickens lançado em 1854, que retrata a sociedade vitoriana com seus problemas sociais e econômicos herdados da revolução industrial e onde tudo é focado no pragmático. Não são permitidos voos de imaginação ou momentos de alegria, sob a espessa camada de fuligem cinza que recobre a fictícia cidade de Coketown, uma referência ao carvão, o combustível que impulsionou a revolução industrial. Esses tempos sombrios voltam a assombrar o Reino Unido, aquele que orgulhava seus colonizadores como “o império onde o sol nunca se põe”. Depois do Brexit, o país se vê como uma ilha isolada, com inflação perto dos dois dígitos: 9,1%, um recorde de 40 anos batido em maio e que deve chegar a 11% no fim deste ano, segundo o Banco da Inglaterra. A recessão bate à porta dos britânicos.

A dívida do país, que passou de dois trilhões de libras esterlinas na pandemia, pode mais que triplicar se o governo não apertar a política fiscal e chegar perto de 320% do PIB em meio século. Pelo menos é o que alerta a Receita e Alfândega de Sua Majestade, ou HMRC na sigla em inglês, o órgão fiscalizador do Reino Unido. Para o Fundo Monetário Internacional, a inflação e o crescimento mais lento do que qualquer outra grande economia do mundo em 2023 deve levar esta geração a um “aperto único” em seu padrão de vida nos próximos meses. Desligar o aquecimento e cortar compras viraram rotina de famílias inteiras, à beira do colapso financeiro, com salários que não acompanham a inflação. E, assim, é com descrédito ou apatia que os 67,2 milhões de habitantes do Reino Unido aguardam a definição do próximo primeiro-ministro, em 5 de setembro, depois que o governo Boris Johnson colapsou, deixando para trás a quinta economia mundial em crise profunda.

Se a situação não estava boa por causa da pandemia, a guerra na Ucrânia só agravou as chances de recuperação.  No limbo entre a saída em definitivo de Boris Johnson, com seu comportamento vitoriano de “vícios privados, benefícios públicos”, e a chegada do novo premiê, a pressão cresce. Aquele que ocupar a cadeira não terá muita margem de ação para compensar o impacto do aumento de preços global, tanto de energia como de alimentos. E as implicações a longo prazo dessas decisões serão bem caras para a população, de qualquer maneira.

“Investimentos feitos não irão se pagar. Vão virar pó”  VanDyck Silveira, CEO da Trevisan Escola de Negócios

Especialista em macroeconomia, VanDyck Silveira acredita que o Reino Unido deverá entrar em recessão, assim como a Europa em geral, ainda neste ano. E nela ficará por um longo período. “A situação dos britânicos é bem complicada. Governantes vão viver para se arrepender de erros estratégicos. Foram muitos gastos na pandemia, com dívida grande, déficit elevado de orçamento, acomodação de inflação com taxa de juros muito baixa. Investimentos feitos não irão se pagar. Vão virar pó. Apenas o aumento da taxa de juros não resolverá o problema. Vai, sim, contribuir para a recessão. Não vejo saída fácil.”

Para o economista, “o Brexit foi uma desgraça”, motivado pela xenofobia contra europeus do Leste que trabalhavam em hotéis, limpeza e transporte com caminhões. “Grande parte da inflação ocorre por falta de trabalhadores para essas operações sem necessidade de especialização, executadas por poloneses, lituanos, colônias gigantescas”, afirma. “E, pelo lado do colarinho branco, grande parte dos executivos da City [a área financeira de Londres] que trabalhavam em bancos, fundos, foi para Amsterdã, Frankfurt e Paris.” Essa mudança ainda criou um impasse com a União Europeia, diz o especialista, lembrando que o bloco pode endurecer o jogo. “O Brexit criou fissuras em uma economia já vulnerável como a do Reino Unido, que não tem um tratado de livre comércio com os EUA, nem com a Europa, nem com a China. Tem produtos importados, com tarifa, e a demanda por produtos britânicos cai no mundo. É uma situação sui generis. O Brexit foi um tiro nos dois pés e pode ter sido na cabeça.”

Novo premiê

Os favoritos do Partido Conservador para a chefia de governo ainda não conseguiram convencer os especialistas de que têm um programa consistente para reverter o declínio e aumentar a produtividade da economia. Cabe à legenda escolher o novo premiê, pois tem a maioria na Câmara, em escolha final no dia 5 de setembro. Os candidatos só podem se lançar com apoio mínimo de oito colegas. No primeiro turno, precisam receber 5% de votos para seguir na disputa (ou 18 deputados dos 358 conservadores). A partir daí, a cada rodada cai aquele com menos votos até sobrarem dois. Só então votam os 180 mil filiados de todo o país.

Segundo uma pesquisa da IPSOS, empresa global de pesquisa e inteligência de mercado, 34% dos britânicos consideram que Keir Starmer, do Partido Trabalhista, seria a melhor opção para o cargo (o que não será possível, pela maioria conservadora do Parlamento), enquanto 29% citam Rishi Sunak, do Partido Conservador (sobre este, aliás, 42% acreditam que ele não faria diferença em relação a seu antecessor Boris Johnson, que caiu em desgraça após uma série de escândalos). Mesmo em primeiro lugar entre os conservadores, Sunak é visto apenas por 31% dos entrevistados como alguém que faria um bom trabalho, contra 36% que pensam o contrário.